Terra em Transe – sempre

Francisco Camargo fala sobre um clássico do cinema brasileiro, dirigido por Glauber Rocha

Há quem espere o mês de maio pelo tradicional feriadão do dia 1º e outras datas comemorativas. É que o calendário, bem recheado, inclui o Dia da Literatura Brasileira, Dia Mundial da Liberdade de Imprensa, Abolição da Escravatura, Dia Internacional de Combate à Homofobia, Dia do Gari, Dia do Abraço, Dia do Detento, Dia Nacional da Mata Atlântica, Dia da Aeromoça e por aí vai… Tem até o Dia do Cocktail.

Assim sendo, e não sem uma boa dose de razão, há quem (sempre ligado no cinema) defenda a inclusão de outro registro importante no mês de maio. Foi no dia 6 que Glauber Rocha concluiu um de seus grandes trabalhos, Terra em Transe. Isso mesmo, 52 anos atrás. Provocando muitos debates e controvérsias – em termos culturalmente elevados, respeitosos, o que, hoje, certamente, seria muito difícil de ocorrer…

Proibido em todo o país

Com roteiro do próprio Glauber, o filme foi proibido em todo território nacional pela redentora de 64. Para os donos do poder, sempre de plantão, Terra em Transe era subversivo e irreverente até com a Igreja – e só seria liberado com a condição de que fosse dado um nome ao padre interpretado por Jofre Soares. No poder, diante da câmera, estava Porfírio Diaz, nome de um ditador que mandou e desmandou no México por 31 anos. Liberado pela censura da ditadura civil/militar, o filme marcou sua estreia no dia 19 de maio de 1967, no Rio de Janeiro. Já em Portugal, permaneceria proibido até 1974.

O senador Porfírio Diaz (Paulo Autran) detesta seu povo e pretende tornar-se imperador de Eldorado, um país localizado na América do Sul. Mas vive trombando com homens que querem o poder e resolvem enfrentá-lo. No meio do tiroteio está o jornalista (e poeta) Paulo Martins (Jardel Filho). Muito mais do que um filme.

Entre os 100 melhores

Em novembro de 2015, por conta da Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine), Terra em Transe passou a integrar a lista dos 100 melhores filmes brasileiros de todos os tempos. Tanto que, em artigo publicado na Revista de História da Biblioteca Nacional, edição de abril de 2015, o professor Sander Cruz Castelo, da Universidade Estadual do Ceará, defendeu a exibição do filme em sala de aula, “o que favoreceria o ensino de História”. Com Terra em Transe, destacou, “Glauber ataca todos os interesses do tempo do golpe civil-militar de 1964”. Para o professor, o filme “favorece a reflexão social e política”.

E o nosso cineasta mereceu um estudo de um grupo de análise fílmica na Universidade de Paris VIII-Vincennes:

– Na decupagem técnica, a escrita se afirma como processo e não como reflexo. Trata-se, então, de analisar as representações ideológicas produzidas por esta escrita, recusando-se a considerar a formulação política como o significado direto do filme, mas atribuindo-lhe também a instância e de significante (articulada a outros significantes) e de referente último, cujo sentido não pode ser apreendido senão na construção de sistemas de significação.

De Glauber sobre Glauber

– Câmera na mão e uma ideia na cabeça: Mais fortes são os poderes do povo!

Ainda em maio de 2005, a revista Indústria Brasileira, ao abordar o projeto de recuperação dos filmes de Glauber Rocha e de outros diretores, como Joaquim Pedro de Andrade, publicou trechos inéditos de um press book escrito pelo cineasta para o lançamento de Terra em Transe:

– É um filme urbano, direto, concentrado, violento, direto. É um filme onde não existem efeitos técnicos nem sequências de brilho. O que interessa é o seu todo dramático, a história que narra, os problemas que debate numa atmosfera onde o real e o fantástico se misturam dentro da maior liberdade possível. Recuso qualquer influência. Terra em Transe é um filme meu, individual, sem referências abertas e sem qualquer macaqueamento.

– Não tenho pretensões de fazer grandes filmes. Tenho apenas a justa ambição de expressar a minha realidade da maneira que posso expressar. Viso todas as camadas do público. Se meus filmes são às vezes herméticos, reconheço que isso é uma falha minha. Mas só me sentirei bem com o cinema no dia em que, sem fazer concessões à pornografia e ao mau gosto, atingir o público. (…)

– Terra em Transe é um filme sobre política e é um filme político. Ele não contém mensagens acabadas, eu não sou professor. É um espetáculo sobre política, um espetáculo sobre os problemas morais da política, um espetáculo sobre a consciência política e um espetáculo sobre os movimentos políticos.

– Técnica de filmar? Improviso total com os atores e a câmera. Mas antes dois anos de roteiro, 700 páginas escritas e reescritas. Depois podemos improvisar à vontade, recriando o mundo, a atmosfera, os sentimentos.

– O cinema vem do ator, do ar, da luz, dos cenários, do humor da equipe, da alegria ou da tristeza, do cansaço ou da disposição – conclui.

Da censura do Itamaraty à prisão

Terra em Transe foi indicado para a mostra competitiva do Festival de Cannes apesar da oposição do Itamaraty, que indicou para o festival Todas as Mulheres do Mundo, de Domingos de Oliveira.

Glauber foi preso em novembro de 1965 por participar do protesto contra a ditadura durante uma reunião da Organização dos Estados Americanos (OEA) no Rio de Janeiro. Ficou preso durante 23 dias.

De 1971 a 1976, banido pela ditadura civil-militar, viveu no exílio.

Terra em Transe conquistou o Prêmio da Crítica do Festival de Cannes; o Prêmio Luis Buñuel, na Espanha; o Prêmio de Melhor Filme do Locarno International Film Festival; e o Golfinho de Ouro de melhor filme do ano, no Rio. Já com O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro (1968), Glauber ganhou o prêmio de melhor direção no Festival de Cannes e, outra vez, o Prêmio Luiz Buñuel, na Espanha.

Ainda de Glauber

– Inventar-te-ia antes que os outros te transformem num mal-entendido.

O cineasta baiano nasceu em Vitória da Conquista em 1939 e morreu em 1981. Vivo fosse, o que diria hoje do Eldorado, o país que transpôs para a tela em Terra em Transe, abordando a luta pelo poder?

Num país fictício chamado Eldorado, o jornalista e poeta Paulo (Jardel Filho) oscila entre diversas forças políticas em luta pelo poder. Porfírio Diaz (Paulo Autran) é um líder de direita, político paternalista da capital litorânea de Eldorado. Dom Felipe Vieira (José Lewgoy) é um político populista e Julio Fuentes (Paulo Gracindo), o dono de um império de comunicação. Em uma conversa com a militante Sara (Glauce Rocha), Paulo conclui que o povo de Eldorado precisa de um líder e que Vieira tem os pré-requisitos para a missão. Grande clássico do Cinema Novo, o filme faz duras críticas à ditadura.

Glauber no papel

A quem interessar possa: parte do texto acima contém trechos dos livros Cinema Moderno/Cinema Novo – José Álvaro Editor, 1966, de Glauber Rocha mais Gustavo Dahl, Luiz Carlos Maciel, Norma Bahia Pontes, Paulo Perdigão, Flávio Moreira da Costa, Jaime Rodrigues Teixeira e David Neves; Revisão Crítica do Cinema Brasileiro, de Glauber Rocha, Editora Civilização Brasileira, série Retratos do Brasil, 1963; e Roteiros do Terceyro Mundo, 1985, também de Glauber.

Prêmios concedidos ao mestre: Prêmio FIPRESCI (Federação Internacional da Imprensa Cinematográfica), Festival de Cannes; Grand Prix, Festival de Locarno; Melhor Filme e Prêmio da Crítica, Festival de Havana; Melhor Filme, Melhor Ator (José Lewgoy), Melhor Atriz (Glauce Rocha) e Menção Honrosa (Luiz Carlos Barreto), Festival de Juiz de Fora. Melhor Atriz (Glauce Rocha), Melhor Roteiro, Melhor Fotografia e Melhor Edição, Prêmio Governo do Estado de São Paulo.

 

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