Que falta faz o Velho Graça…

Autor de Vidas Secas e Memórias do Cárcere foi prefeito e mandou multar o próprio pai

Muita gente ficou sabendo do episódio, mas, nesses tempos politicamente cada vez mais bicudos – ou das bicudas, já que é só bola pro mato – vale a pena voltar ao assunto, embora não se trate de futebol. Graciliano Ramos, autor de Vidas Secas (1938) e Memórias do Cárcere (1953, livro publicado postumamente), entre outras obras, foi prefeito de Palmeira dos Índios, Alagoas. Eleito em 1927, assumiu no ano seguinte, exercendo o cargo por 2 anos. Renunciou no dia 10 de abril de 1930, posto que, “embora ganhasse subsídios simbólicos, não se locupletava com a corrupção. Daí ter empobrecido em dois anos de mandato”.

Ainda dos registros históricos: “Quando prefeito, soltava os presos para construírem estradas”. Preso em 1936, sem acusação formal ou provas, simplesmente acusado de envolvimento com a Intentona Comunista de 1935, Graciliano não reclamou:

– Em qualquer lugar, estou bem. Dei-me bem na cadeia. Tenho até saudades da Colônia Correcional. Deixei lá bons amigos.

Graciliano faleceu no Rio de Janeiro, no dia 20 de março de 1953.

Voltando no tempo 2

Maio de 2000. A revista República traz uma preciosidade: a matéria “A princesa nua e suja de Graciliano”, texto de José Luiz Vitu do Carmo, que é, claro, o bom jornalismo, o jornalismo plural. Vitu do Carmo esteve em Palmeira dos Índios. Breves trechos:

– O escritor arredio foi um tocador de obras que enfrentou fazendeiros e moralizou o comércio.

– Prefeito a contragosto, mandou os pedintes quebrar pedras em troca de dinheiro. Eles não foram mais vistos na cidade.

– Brigou até com o pai, o velho Sebastião Ramos, após mandar um fiscal multá-lo por descumprir a determinação da prefeitura de não deixar animais soltos nas ruas da cidade. Quando o pai, magoado, reclamou, Graciliano teria respondido: “Prefeito não tem pai. Eu posso pagar sua multa. Mas terei de prender seus animais toda vez que o senhor os deixar na rua”.

– Aí, um fiscal hesitou em multar o pai de Graciliano. “Prefeito não tem pai”, ouviu do Velho Graça.

– Tido ora como brincalhão, ora como um poço de azedume, Graciliano foi eleito prefeito em 1927 e empossado no ano seguinte. Em 1932, renunciou e se transferiu para Maceió, onde foi nomeado diretor da Imprensa Oficial. Nascido em 27 de outubro de 1892, em Quebrangulo, sertão de Alagoas, era o primeiro dos dezesseis filhos de Sebastião Ramos de Oliveira e Maria Amélia Ferro Ramos.

Graciliano foi eleito com 433 votos. Não teve adversário. Imperava o voto de cabresto, só votava quem estava na lista elaborada pelos donos do poder. Aceitou concorrer depois de muito hesitar, sendo afinal convencido por amigos de diferentes grupos políticos de que, por sua honradez, era o único nome de consenso. Não participou da campanha eleitoral, não fez promessas nem se envolveu em composições políticas para a escolha dos conselheiros municipais (vereadores).

E, depois, diria:

– Se a minha estada na prefeitura dependesse de plebiscito, talvez eu não obtivesse dez votos.

Como fazendeiros poderosos desrespeitavam as terras dos vizinhos, Graciliano tratou de enquadrá-los. E promoveu demissões para ajustar sua equipe e teve superávit de quase 20% nos dois anos em que foi prefeito.

Era um mundo governado pelo bacamarte, mas ele pôs em vigor um Código de Posturas, que igualava pobres e riscos, impedia a venda de carne estragada e cobrava impostos de pecuaristas mal-acostumados. Um destes, que também era conselheiro municipal, cargo equivalente ao atual de vereador, foi cobrar-lhe explicações, dizendo que nunca vira semelhante desproposito. Graciliano respondeu que convinha pagar logo o tributo – ou seria acrescido de multa. A lei existia, explicou, e até o reclamante era um dos que a tinham subscrito:

– Não tenho culpa de você ser burro e assinar papel sem ler.

Ainda do texto de José Luiz:

– É improvável que nos próximos anos – 70 ou mais – a literatura brasileira produza muitos outros exemplares da espécie de Graciliano Ramos. Já a política brasileira, essa nem parece interessada.

Um texto de Graciliano:

– Começamos oprimidos pela sintaxe e acabamos às voltas com a Delegacia de Ordem Política e Social, mas, nos estreitos limites a que nos coagem a gramática e a lei, ainda nos podemos mexer.

Em 1936, sob a ditadura de Vargas e do coronel Filinto Strubing Müller, em março Graciliano foi preso, enviado a Recife e posteriormente ao Rio de Janeiro, sob a acusação (não formalizada) de ter conspirado na mal sucedida Intentona Comunista de novembro de 1935. Em janeiro de 1937 foi libertado. As experiências vividas no presídio foram repassadas em Memórias do Cárcere, livro publicado postumamente em 1953. Nesse mesmo ano, recebeu o prêmio Literatura Infantil, do Ministério da Educação, com a obra A Terra dos Meninos Pelados.

Voltando a Memórias do Cárcere: na página 170 do segundo volume, Graciliano faz uma descrição da chegada de outros presos: “Os paranaenses, graves, metódicos, arrumavam-se para descansar da melhor maneira, examinavam lentos a sala acanhada, permutando cochichos”.

E assim foi. Graciliano(s) Ramo(s) faz(em) muita falta hoje.

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