Ao volante – com firmeza e muita simpatia

Curitiba tem 81 mulheres dirigindo ônibus. Os números ainda são tímidos frente aos mais de 4 mil motoristas contratados pelas empresas operadoras do transporte público na capital

Da mesa de um certo bar no Juvevê, não há como deixar de acompanhar, na Avenida João Gualberto, o vai e vem dos vermelhões – os trepidantes ônibus biarticulados de Curitiba. Até porque, do outro lado da rua, existe uma estação-tubo. Mas foi um vermelhão em disparada, no sentido bairro-centro, que chamou a atenção de um freguês – e por um pequeno (mas que se revelaria grande) detalhe: o motorista era uma, isso mesmo, uma motorista.

Despido de qualquer preconceito, ou seja, livre qualquer sentimento hostil assumido em consequência de generalizações apressadas de uma experiência pessoal ou imposta pelo meio, o referido freguês decidiu dar uma de repórter. E foi atrás do que seria uma informação altamente positiva. Até porque nasceu e cresceu num tempo em que o machismo corria solto – e era mais do que comum ouvir comentários do tipo “lugar de mulher é na cozinha”, “mulher ao volante é um perigo”… “jogar futebol é coisa de homem”… “tal profissão é só pra homem”…

A mais importante revolução

O tal cliente do não nominado bar da João Gualberto, mas uma ótima dica, já em casa foi em frente. Recorreu a alguns livros. O primeiro deles, de Norberto Bobbio – filósofo político, historiador do pensamento político, escritor e senador vitalício italiano. Bobbio não deixou por menos: “A revolução da mulher foi a mais importante revolução do século 20”.

Ou seja, “toda a superação desta ou daquela discriminação é interpretada como uma etapa do progresso da civilização. Jamais, como em nossa época, foram postas em discussão as três fontes principais de desigualdade entre os homens: a raça, o sexo e a classe social”.

Mercado de trabalho

Ainda de Bobbio:

– Superar a discriminação é a civilização atingindo o progresso, tal entendimento pode ser incluído no sentido da evolução da mulher no mercado de trabalho, pois compreende-se que dar fim a discriminação, a desigualdade é sem dúvida um grande avanço na sociedade, e, portanto é isso que as mulheres buscaram e buscam ao longo dos anos.

– Infelizmente a discriminação, o preconceito e a desvalorização da mulher são facilmente identificados. Se formos analisar ao longo dos anos, perceberemos que as raízes culturais sempre estiveram intimamente ligadas à figura feminina direcionando as diferenças biológicas em relação ao homem, sendo que, para muitos, a mulher deveria ter como objetivo de vida tão somente cuidar do lar, ser esposa e mãe dedicada.

Direitos ainda ameaçados

Atualmente, e infelizmente, ainda resistem muitos bolsões de machismo, ignorando ou atropelando a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 e a Consolidação das Leis Trabalho, que asseguram o que antes parecia impossível: direitos iguais aos dos homens quanto a salários, assumir cargos de chefia e assim por diante, com excelente desempenho em muitos e complexos setores.

Uma entre 81 mulheres

Depois das consultas a livros, o improvisado repórter recorreu ao site da Urbs – Urbanização de Curitiba S/A. E encontrou mais do que procurava: um texto de Amilton Daemme, gestor de Fiscalização de Transporte da Urbanização de Curitiba.

– Embarcando no biarticulado Santa Cândida/Capão Raso preste atenção. Quem dirige um dos ônibus desta linha é a motorista Vânia Custella. Ela é uma das 60 mulheres que atualmente dirigem ônibus do transporte coletivo de Curitiba.

Os números ainda são tímidos frente aos mais de quatro mil motoristas contratados pelas empresas operadoras do transporte público na capital, porém indicam a quebra de paradigma dentro de um universo profissional predominantemente masculino.

Um caminho sem volta

– Na década passada era uma raridade encontrar mulheres dirigindo ônibus coletivo, ainda mais Expressos (biarticulados). Hoje, as barreiras estão caindo e é um caminho sem volta, pois elas estão conquistando espaço por merecimento, competência e por trabalhar de igual para igual, afirma Amilton Daemme.

No transporte da capital, as mulheres dirigem também ônibus de linhas alimentadoras, convencionais, Interbairros e Linha Turismo. Somando as linhas da região metropolitanas, são 81 mulheres na direção, segundo levantamento do Sindicato das Empresas de Ônibus de Curitiba e Região Metropolitana. Oito das dez empresas do sistema de transporte metropolitano de Curitiba têm mulheres no quadro de motoristas.

De cobradora a motorista

A maioria dessas profissionais começou dentro das empresas em outras funções, como cobradoras, auxiliares de serviços gerais e foram mostrando interesse de se capacitar para assumir o volante. Caso de Lurdes de Melo, que há dois anos dirige em duas linhas: Campina do Siqueira/Batel e Campo Comprido/Capão Raso.

Lurdes começou na empresa Araucária Transporte como atendente do Transporte do Ensino Especial e quis mais. Fez o curso na Escola de Formação oferecido pela empresa e correu atrás dos requisitos necessários para assumir o volante. E pensa grande. “O próximo passo agora é tirar a carteira para dirigir biarticulado”, fala Lurdes.

Além de receber salário e benefícios iguais aos demais colegas, Lurdes nunca sofreu preconceito, nem por parte dos passageiros nem dos colegas de profissão. “No máximo um passageiro que olha mais curioso pela surpresa de ver uma mulher no volante do ônibus. Ainda não é uma coisa muito comum.”

Outro destaque dentro da empresa é Ivone Dal Farra. Ex-diarista, hoje ela é uma das responsáveis pela manutenção e conserto da lataria, pintura, pneus, vidros, teto e piso dos ônibus. “Faço o que gosto e me dedico com gosto, mas meu objetivo é ser motorista e estou correndo atrás”, diz.

Carteira categoria E

Para dirigir biarticulado é preciso ter carteira de motorista categoria E. Vânia Custella já tinha a habilitação quando foi contratada pela empresa Glória, há dois anos e meio. Ela é uma das poucas contratadas diretamente como motorista. “Essa sempre foi minha profissão, o primeiro registro na carteira de trabalho foi de motorista e hoje dirijo um dos maiores ônibus do mundo. É um orgulho muito grande”, diz Vânia.

O “machismo” feminino

O ônibus que Vânia conduz quase todos os dias tem 28 metros de comprimento. Ao contrário da colega da empresa Araucária, ela percebe o preconceito de alguns passageiros. “No começo era muito mais, agora já nem tanto, mas, por incrível que pareça no meu caso são as mulheres que demonstram mais preconceito quando reparam que outra mulher está no volante do ônibus.”

Para Márcio José dos Santos, instrutor de motoristas da empresa Glória, a tendência é ter cada vez mais mulheres motoristas. “As empresas estão percebendo que elas são mais cuidadosas e o trabalho delas é muito elogiado pelos passageiros. Assim como aconteceu com as cobradoras, a tendência é aumentar o número de contratação de mulheres motoristas”, disse Márcio.

PS. do Plural: parabéns a elas e aos demais funcionários da Urbs.

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