64 e a censura à imprensa. Como surgiu e chegou a Curitiba

Francisco Camargo conta como a ditadura militar agiu para restringir a liberdade dos jornais

Sobre a censura aos jornais, por conta do golpe civil/militar de 64. No início, a proibição vinha em documento oficial – entregue diretamente na redação:

MINISTÉRIO DA JUSTIÇA/DEPARTAMENTO DE POLÍCIA FEDERAL/

DELEGACIA REGIONAL NO PARANÁ E STA.CATARINA

Com direito a carimbo da Polícia Federal, assinatura do inspetor-chefe (Serviço de Ordem Política e Social) e texto altamente explícito:

– Faço-lhe ciente que POR ORDEM DO SR. MINISTRO DA JUSTIÇA não deverão ser divulgadas notícias referentes a…

Agradecemos atenciosa colaboração.

Entregue a “ordem superior”, a dupla de policiais voltava à viatura da PF, estacionada (bem visível para a vizinhança) em frente ao jornal.

Com o passar do tempo foram dispensadas as formalidades “legais”. As proibições chegavam pelo telefone. No caso do jornal O Estado do Paraná, o jornalista era forçado a utilizar papel carbono, já que a notificação atingia dois jornais. A cópia era pra Tribuna, que rodava depois de O Estado do Paraná.

Não demorou muito e surgiria o que foi batizado de cães de guarda pela historiadora Beatriz Kushnir, ao demonstrar “a imprensa que colaborou com a ditadura”.

Beatriz é autora do livro Cães de Guarda – jornalistas e censores, do AI-5 à Constituição de 1988. Lançado em 2004, pela Boitempo Editorial, mostra o que muita gente ainda tenta esconder hoje em dia.

Capa do livro Cães de Guarda – jornalistas e censores, do AI-5 à Constituição de 1988

Com a palavra, sem censura, grifo nosso, Beatriz Kushnir:

“A censura à imprensa no pós-64 atuou a partir de uma agência chamada Sigab (Serviço de Informação do Gabinete), que estava diretamente vinculada ao gabinete do ministro da Justiça. Eram censores da Polícia Federal, que foram transferidos para esse serviço e que, diariamente, ligavam para os jornais para dizer: “De ordem superior fica proibido…”. Eram os chamados bilhetinhos da censura. Muitas vezes os jornalistas sabiam o que estava acontecendo a partir desses telefonemas. Isso tudo foi feito depois do AI-5. Mas, na noite de 13 de dezembro de 1968, a maior parte das grandes redações passou a receber pessoas do Exército para fazer censura. Os veículos também receberam uma lista do que estava proibido e permitido liberar. Era um número muito reduzido de censores. Então, como esse número reduzido fazia censura à imprensa, ao teatro, à música, ao cinema? É porque se trabalhou com a ideia de autocensura. Como dizia Cláudio Abramo (um dos maiores jornalistas brasileiros), o jornal tem um dono e sai o que o dono quer. Vamos lembrar também que a lei de censura prévia é de 1970, mas, como eu mostro no meu livro, encontrei um documento do Sette Câmara (José Sette Câmara, então diretor do Jornal do Brasil) endereçado ao Alberto Dines (também um dos jornalistas mais reconhecidos do país), de antes da censura prévia, no qual o Sette Câmara dizia como agir dentro do Jornal do Brasil. A censura era feita dessa maneira, introjetando nas redações o que era proibido e o que era permitido.”

Em A Regra do Jogo, Companhia das Letras, 1988 (livro organizado por Cláudio Weber Abramo, filho do jornalista), Cláudio Abramo é taxativo: “O jornalista não tem ética própria. Isso é um mito. A ética do jornalista é a ética do cidadão. O que é ruim para o cidadão é ruim para o jornalista”.

Capa do livro a regra do jogo

LP – 15 de março de 1971 a novembro

Mais censura no caso de Haroldo Leon Peres, governador nomeado do Paraná. Por conta da (dupla) mancada do, para dizer o mínimo, ditador de plantão, a censura disparou uma série de ordens. Em Curitiba, o principal alvo foram os jornais O Estado do Paraná e a Tribuna.

Leon Peres governou o Paraná entre março e dezembro de 1971.

A sequência das proibições forma um roteiro do absurdo.

Dia 18 de agosto de 1971: proibida qualquer matéria contra o governo do Paraná.

17 de novembro: fica proibida qualquer publicação sobre Leon Peres versando sobre especulação de renúncia.

No dia 18 de novembro, três proibições. Divulgar qualquer pronunciamento de LP; divulgar especulação sobre renúncia; e a terceira mantendo as proibições até “2.ª ordem”.

19 de novembro: proibida divulgação referente renúncia e pronunciamento de Leon Peres.

20 de novembro: proibido noticiar renúncia ou pronunciamento de Leon Peres.

22 de novembro: proibido noticiar comentários sobre fatos ou atos envolvendo Leon Peres – inclusive nota do Palácio Iguaçu.

23 de novembro: noticiar atos ou fatos envolvendo Leon Peres ou comentário sobre renúncia.

25 de novembro: proíbe qualquer notícia relativa a Leon Peres.

26 de novembro: repete a ordem.

30 de novembro: proibido divulgar qualquer coisa sobre Leon Peres, particularmente especulação sobre sua renúncia e eventuais causas – mais a ameaça de apreender edições do jornal.

3 de dezembro: proibido tudo sobre caso Leon Peres até segunda ordem.

Voltando no tempo

Leon Peres foi escolhido pelo general Emílio Garrastazu Médici em abril de 1970. No ano seguinte, quando desembarcou em Curitiba, deu um carteiraço federal. Intitulou-se “delegado da Revolução”. Assumiu em março.

No livro Paulo Pimentel, Momentos Decisivos, de Hugo Mendonça Sant’Ana, Travessa dos Editores, 2008 , temos que no dia 17 de novembro Leon Peres era fritado. A renúncia já era “notícia” em alguns círculos no dia 23 novembro.

No dia 24 de novembro, a censura suspende a proibição sobre a renúncia, mas, malandramente, mantém a proibição de comentários sobre a escolha de Leon Peres e os critérios adotados pelo presidente de plantão. Tal negócio. Quando o barco fez água, o criador tratou de renegar a criatura.

Finalmente, o texto oficialesco: “O governador Haroldo Leon Peres confirmou ontem o seu afastamento definitivo do governo”. A nota oficial do Palácio Iguaçu:

“Em virtude de notórias dificuldades enfrentadas na direção do Estado, entendeu de seu dever afastar-se definitivamente. A Assembleia Legislativa dá posse hoje a Parigot de Souza, 73.° governador em 118 anos do Paraná”.

E por aí continuamos por um bom tempo…

Leia mais artigos de Francisco Camargo

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