Bens culturais afros tombados pelo Estado

Foram as pessoas negras escravizadas que construíram muitas das obras do estado usando tecnologia negra, como a técnica de construção de pilão de pedra e de pilão de taipa

O Paraná conta, atualmente, com mais de 200 bens culturais e naturais protegidos pela Coordenação do Patrimônio Cultural do Estado. Chama a atenção que deste total, apenas nove estão inseridos – de uma forma ou outra – no legado da cultura afro. Todos esses itens estão localizados dentro do chamado Paraná Tradicional – que abrange o litoral, o planalto curitibano e a região dos Campos Gerais –, justamente por serem as áreas que historicamente convivem há mais tempo com os povos oriundos do continente africano (pelo menos, desde a segunda metade do século 17).

Esses nove bens possuem elementos históricos identificados, principalmente, com a escravidão negra africana no território paranaense. Além disso, esse número, certamente, não representa o tamanho da importância cultural, social e econômica do legado dos povos africanos para o estado do Paraná.

Afinal, foram as pessoas negras escravizadas que construíram muitas das obras do estado usando tecnologia negra, como a técnica de construção de pilão de pedra e de pilão de taipa. É essa a imagem retratada, inclusive, em aquarela de Jean-Baptiste Debret, de 1827, uma das primeiras obras a retratar a imagem da cidade de Curitiba. O quadro tem como protagonista um jovem trabalhador negro que exerce seu ofício, provavelmente na construção da capela de São Francisco de Paula, concluída em 1811.

Foi pelas mãos de homens e mulheres afros que se ergueram em Curitiba, por exemplo, os casarios e as antigas igrejas, as alvenarias de pedra, como as Ruínas de São Francisco, a própria Igreja da Ordem, a atual Catedral da cidade, a Casa Romário Martins – além da Igreja do Rosário dos Homens Pretos de São Benedito (1737), demolida nos anos 1930, para dar lugar ao templo atual. Isso só para citar alguns exemplos.

Dessa forma, o número de bens tombados para homenagear e, principalmente, reconhecer a importância do papel dos africanos na constituição do Paraná poderia (e deveria) ser muito superior.

Eis os bens tombados atualmente que têm ligação com os povos afros, segundo a própria Coordenação do Patrimônio Cultural:

Fortaleza de Nossa Senhora dos Prazeres, na Ilha do Mel.

 – Fortaleza de Nossa Senhora dos Prazeres, tombada em 1972 e localizada na Ilha do Mel. Construída em 1769 por escravos. Em 1850, a Fortaleza foi cenário da Batalha de Cormorant, quando quatro navios negreiros foram perseguidos pelo navio inglês HMS Cormorant em uma época em que o tráfico de escravos já estaria proibido desde 1831. Dois meses depois desse episódio, surgiu a Lei Eusébio de Queiroz, mais severa e que se mostrou mais eficaz para impedir o tráfico de escravos africanos. Mesmo assim, segundo o historiador Romário Martins, as denúncias de navios negreiros no litoral paranaense seguiram, pelo menos, até 1861.

Igreja de São Benedito, tombada em 1962 e localizada em Paranaguá. A irmandade São Benedito nasceu na antiga Igreja das Mercês e teve sua oficialização em 1710. Essa irmandade era composta por escravos e alforriados. A construção da Igreja de São Benedito teve início em 1784, no mesmo local onde ficava Igreja das Mercês.

Igreja Nossa Senhora do Santíssimo Rosário, de Paranaguá e tombada em 1967. A primeira construção do templo data de 1578, mas o templo não pode ter esta data como sendo a de sua construção, já que não resta quase nada das características do edifício original. Em 1725, foi oficializada a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário de Paranaguá, com as características físicas atuais da igreja. Assim, o templo é uma das edificações mais antigas do Paraná e foi construído por escravos africanos.

Igreja da Irmandade de São Benedito, em Morretes.

Igreja da Irmandade de São Benedito, de Morretes e tombada em 1985. No ano de 1760, foi fundada na cidade a Irmandade de São Benedito reunindo, conforme rezam seus estatutos, “pretos, escravos e administradores e pessoas livres que por suas devoções quiserem pertencer a ella sem distinção de sexo ou idade, com tanto que professem a religião Catholica Romana, tendo por fim festejar annualmente ao Glorioso S. Benedito no dia 25 de Dezembro”.

Coleção do Museu David Carneiro, tombado em 1972 e localizado no Museu Paranaense, em Curitiba. Fundado em 1928, conta com uma coleção de minerais, fósseis, moedas, armas, entre outros. Há material bélico e uniformes militares usados em 1894, no Cerco da Lapa durante a Revolução Federalista. Há vasto material de uso cotidiano, como utensílios domésticos, que retratam o período da escravidão no estado.

Coleções Etnográficas, Arqueológicas e Artísticas do Museu Paranaense, de Curitiba. O amplo acervo do mais importante museu histórico do estado conta com itens e obras históricas que ilustram a presença e a cultura afro no Paraná.

Solar do Conselheiro Jesuíno Marcondes de Oliveira e Sá, tombado em 1970 e localizado em Palmeira. Estima-se que a construção seja de meados do século 19 e foi erguida por escravos.

Capela Santa Bárbara do Pitangui, situada em Ponta Grossa e tombada em 2000. Com a expulsão dos jesuítas, efetuada por ordem do Marques de Pombal em 1759, a capela foi confiscada e anexada à Coroa Portuguesa. Os escravos que ali viviam foram alforriados.

Fazenda Capão Alto, localizada em Castro. Em 1751 a Fazenda Capão Alto foi adquirida pelos carmelitas. Após a retirada dos carmelitas para São Paulo e Rio de Janeiro a fazenda ficou sob a supervisão de um administrador até ser entregue, após breve arrendamento a terceiros, aos escravos que nela residiam e trabalhavam e que, entregues à própria sorte, organizaram uma república sob a invocação de Nossa Senhora do Carmo. Neste quilombo, os negros trabalhavam a terra e criavam gado. Em 1864, os escravos da Capão Alto – na época, cerca de 300 – foram vendidos à revelia para a firma Gavião, Ribeiro & Gavião, de São Paulo, o que motivou uma rebelião pelo fato de se considerarem livres e, “se escravos, somente de Nossa Senhora do Carmo”. Apesar de toda a reação, os escravos acabaram sendo levados para São Paulo.

Fazenda Capão Alto, em Castro.

Percebe-se, infelizmente, que todos os bens tombados fazem referência aos povos africanos como escravos. Porém, o papel das etnias afros não se resume e não pode se limitar a isso – mesmo porque depois do fim da escravidão, os africanos e seus descendentes permaneceram e permanecem contribuindo com suas habilidades técnicas, profissionais e culturais para o desenvolvimento de toda a sociedade do Paraná. Para isso, enfrentaram e enfrentam um dos crimes mais bárbaros da humanidade, o racismo.

Como escreve a professora e historiadora Joseli Mendonça, no livro Presença Negra em Curitiba, “os negros participaram da formação e desenvolvimento da cidade de maneira expressiva, labutando arduamente, na condição de escravizados, mas também como libertos e livres. Foram carregadores, calceteiros, extratores e beneficiadores de erva mate; tiveram ofícios qualificados, como eram os de pedreiro e carpinteiro nos séculos XVIII e XIX”.

Ao longo da história, constituíram associações para, de forma organizada, “fazer frente ao preconceito e buscar reverter a condição subalterna em que foram colocados”. Por meio da religiosidade, mantiveram e mantém seus traços étnicos unidos, a exemplo das Igrejas de São Benedito e do Rosário, existentes no Paraná e Brasil afora.

Produziram e produzem uma arte de incrível e exuberante qualidade e deixam suas contribuições diárias atuando nos mais diversos campos profissionais, seja na advocacia, na arquitetura, na engenharia ou na docência – só para citar uns exemplos. Uma lástima, no entanto, que o preconceito latente ainda seja um obstáculo imenso.  

Foram três séculos em que o Brasil viveu sob o regime escravocrata. Após a abolição, houve uma completa ausência de políticas reparadoras. Diante disso, não restam dúvidas que o país acumula uma dívida histórica com os povos afros. O problema central é a falta de políticas públicas eficazes que sejam capazes de proporcionar oportunidades iguais a todos os brasileiros. Enquanto isso, o racismo e o preconceito persistem e ratificam o atraso social no qual vivemos em pleno século 21.

Sobre o/a autor/a

Compartilhe:

Leia também

Melhor jornal de Curitiba

Assine e apoie

Assinantes recebem nossa newsletter exclusiva

Rolar para cima