Violência migra das ruas para as casas

Mulheres ficam mais expostas aos agressores devido ao confinamento imposto pela Covid-19

O histórico de violência contra a mulher coloca o Brasil em quinto lugar no mundo em feminicídio, segundo o Mapa da Violência 2015 elaborado pela Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso). Foram 106 mil mortes de mulheres entre 1980 e 2013, além das agressões físicas e psicológicas. Agora, por trás das cortinas de uma pandemia global, há um número incalculável de vítimas invisíveis da violência doméstica. Há uma pandemia dentro de outra.

Recolhidas em casa por causa do isolamento social, elas passam mais tempo ao lado dos agressores. Os dados assustam e evidenciam traços de uma cultura fortemente machista. De acordo com o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH), em 2020 foram registradas mais de 105 mil denúncias de violência doméstica, recebidas por meio do Ligue 180 e do Disque 100. Do total, 72% se enquadram nas descrições da Lei Maria da Penha, com tipificações penais bem definidas.

Em 2021 houve um recuo de 3% no número de casos de violência em relação a 2019. Contudo, a fonte das agressões e a sua localização mostram uma mudança preocupante. Houve queda de 10% nas agressões nas ruas, enquanto aumentou em 6,6% o número de agressões domiciliares, conforme dados levantados pelo Datafolha em 2021. Dentre os agressores mais comuns, os vizinhos abriram espaço para os irmãos, tios, pais, maridos e outros parentes.

O Mapa da Violência 2015 já demonstrava essa tendência há quase uma década, com 55,3% desses crimes cometidos no ambiente doméstico e parceiros ou ex-parceiros das vítimas respondendo por 33,2% dos homicídios. Agora, o levantamento do Datafolha também mostra que, entre as mulheres agredidas, 35,2%, se encontra na faixa de 16 a 24 anos. Mulheres acima dos 45 representam 32,9% dos casos.

Julia (nome fictício) é outro caso que se enquadra no primeiro grupo, quando a violência começa mais cedo. “Quando começamos a namorar, ele me tratava como uma princesa, mas, com o tempo, começou a ficar ciumento”, ela diz sobre o relacionamento abusivo. “Eu tinha 16 anos, o conheci na academia e começamos a sair. Só descobri depois que ele era usuário [de drogas] e que era agressivo”, relata.

Hoje, aos 25 anos, Julia trabalha como recepcionista. Ela lembra com pesar do período em que sofreu abuso físico e emocional, tendo sido perseguida por alguns meses inclusive após o término do relacionamento. A família da vítima, que desconhece os abusos, ainda mantém contato com o agressor. Julia não está sozinha nessa triste realidade. Muitas vezes, as mulheres se veem presas a uma relação abusiva para preservar os filhos.

“Eu não posso me manter sozinha, não tenho renda suficiente para mim e os meus filhos. Enquanto não tiver isso, vou continuar com ele”. O relato é de Amanda (nome fictício), 36 anos, desempregada, que engravidou do namorado aos 15 anos e com 16 se casou. “Durante os primeiros anos ele saía muito, ficava fora até de madrugada e não me dava satisfações. Eu tinha crises de choro e ficava com ciúmes”, conta.

Com o passar do tempo, a relação se deteriorou. O marido se tornou agressivo e paranoico. “Encontrei uma câmera escondida na sala. Ele instalou quando eu não estava em casa para ver o que eu fazia”, descreve. Amanda sofreu agressão física e moral por anos, fatos presenciados também por sua filha mais velha. Amanda ainda mora com o agressor.

Ciúmes e objetificação

Quando se trata de violência doméstica, é preciso identificar os antecedentes que levam à agressão. Mulher carente emocionalmente e mulher que não foi amada na infância tendem a enfrentar esse tipo de problema, indica a psicóloga Adriana de Barros, que trabalhou na Secretaria das Mulheres.

Os fatores que levam o homem a agressão são pouco explorados. De acordo com Barros, “muitos deles aprendem desde criança a objetificar a mulher, a desejar diversas parceiras”. Nos casos de feminicídio, é frequente a motivação por ciúmes.

Segundo Katia Chambo Gonçalves, assistente social da ONG Nova Mulher, o Brasil ainda se encontra preso a uma cultura machista, na qual a mulher é vista como propriedade do homem. “É humilhante ser agredida. Muitas delas preferem esconder a agressão por vergonha”, comenta.

O X do alerta vermelho

Foto: Paulo H. Carvalho/Agência Brasília.

Desenvolvida pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e pela Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), a campanha “Sinal vermelho contra a violência doméstica” tem como objetivo facilitar a busca por ajuda para a mulher. Ao marcar um X em vermelho em sua mão, a vítima pode discretamente informar uma pessoa de que está sofrendo agressões.

A campanha foi criada em 2020 devido às dificuldades de contato entre as pessoas, dando maior segurança para que a mulher se manifeste. Contudo, em se tratando de suporte psicológico “muitas mulheres não têm conhecimento destes serviços e só ficam sabendo quando fazem um boletim de ocorrência”, diz a assistente social Katia Gonçalves.

ONGs como a Nova Mulher, assim como projetos de auxílio por meio de órgãos públicos, são a principal fonte de representação e suporte para as mulheres. A Casa da Mulher Brasileira, por exemplo, iniciativa do governo federal que já dispõe de oito unidades no país, é um centro para proteção e suporte a mulheres que abriga diversas vítimas de agressão que não têm para onde ir.

Apesar da existência destes locais, as vítimas de agressão não costumam buscar ajuda psicológica com frequência. Cursos para geração de renda, suporte psicológico e social, auxílio jurídico, entre outros, são oferecidos às vítimas. Segundo Gonçalves, “muitas delas dependem do agressor financeiramente para que ela e os filhos sobrevivam”.

No entanto, a psicóloga Adriana de Barros chama a atenção para um fator importante. “Muitas mulheres abusadas se tornam agressivas”, diz. Ela chama a atenção para o fato de que é muito importante para a mulher seguir com uma ajuda psicológica após o trauma. Isso pode evitar que sequelas emocionais se manifestem no futuro.

Para a psicóloga, o perigo não é apenas para a mulher, mas especialmente para os filhos de casais em conflito. “Essas crianças irão crescer com traumas. Muitas vezes modificando seu próprio comportamento devido à situação passada pela mãe”, observa. Segundo ela, a busca por apoio social e psicológico deve ser uma prioridade para toda mulher que sofreu agressão.

Um problema histórico

A violência doméstica contra a mulher é um problema crônico e histórico. Em 2018, três mulheres foram vítimas de feminicídio por dia no Brasil. Em 2019, uma média de 729 ocorrências de lesão corporal foram registradas por dia sob a Lei Maria da Penha.

Em sua maioria, as mulheres afetadas são negras (mais de 50% das vítimas são deste grupo). Em aproximadamente 90% dos casos, o agressor é o companheiro atual ou anterior e em 60% deles, as agressões ocorrem na residência da vítima, de acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública.

Orientação: Mauri König (jornalista e professor).

Sobre o/a autor/a

Compartilhe:

Leia também

Um brinde à capital ecológica!

Apesar de todos os títulos e atributos sustentáveis conferidos à Curitiba, do alto de seus 331 anos recém completados, a cidade não está imune à crise climática. Saiba aqui o que podemos fazer a respeito

Leia mais »

Melhor jornal de Curitiba

Assine e apoie

Assinantes recebem nossa newsletter exclusiva

Rolar para cima