Uma rádio fantasma em Curitiba

Há quase duas décadas uma concessão de rádio comunitária dada a uma associação na Boca Maldita silenciou a voz do centro da cidade

Pouco antes da pandemia, quem passeava pelo emblemático calçadão da Rua XV de Novembro no centro de Curitiba ouvia a voz da multidão. Ambulantes defendendo seu ganha-pão, palhaços e malabaristas trocando gracejo pelo sustento, músicos, poetas e loucos inundando cada metro quadrado com arte, voz, melodia e alegria. A Boca Maldita, então, é a síntese da participação política, o palco da esfera pública e cenário das mais diferentes manifestações do povo paranaense: de gritos de Diretas Já! passando por camisetas verdes, amarelas e vermelhas. Apesar do forte pulsar humano e da vontade de fala, desde o começo deste milênio o centro da cidade se cala quando o assunto é ter voz nas rádios comunitárias.

Em 2001, três anos depois da regulamentação do serviço de radiodifusão comunitário no país, um grupo de oito notórios senhores, integrantes da Sociedade Civil Boca Maldita, conseguiram do governo federal o aval para instalar uma rádio comunitária na Praça Osório, no coração do bairro central de Curitiba. À época, o projeto de abrir um rádio foi encabeçado pelo ex-delegado de polícia e ex-funcionário do Tribunal de Contas, Anfrísio Fonseca de Siqueira, conhecido como o fundador da Boca Maldita e da tradicional entidade curitibana Confraria dos Cavaleiros da Boca Maldita. Segundo o vice-presidente da Sociedade Civil Boca Maldita e um dos sobreviventes da lista de dirigentes da entidade, Luiz Geraldo Mazza, o objetivo naquela época era desmistificar o imaginário de que aquela região da cidade seria um polo de manifestações políticas, mas sim, de manifestações culturais.

A saga burocrática para abrir a rádio leva em média uma década. Para a sociedade curitibana, contudo, o processo foi menos demorado. Conforme documento dos Ministérios das Comunicações sobre o andamento do processo da rádio, a “Sociedade Civil Boca Maldita foi autorizada pela Portaria nº 606/2001, de 24 de outubro de 2001, ratificada pelo Decreto Legislativo nº 597/2003, de 26 de agosto de 2003, a executar, pelo prazo de dez anos, sem direito de exclusividade, serviço de radiodifusão comunitária na cidade de Curitiba”.

Em dois anos, a documentação tanto do ministério quanto da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), responsável por fiscalizar o serviço de telecomunicações no país, já havia dado aval para que os “cavaleiros” pudessem dar voz à comunidade do centro da cidade. Quase duas décadas depois disso, no entanto, a rádio que deveria funcionar com sede na Avenida Luiz Xavier, na Galeria Tijucas, especificamente nas “coordenadas geográficas 25°25’55”S de latitude e 49º16’23”W de longitude”, jamais saiu do papel.

Mazza afirma que ficou ao largo do projeto. “A rádio nunca saiu do papel, participei inicialmente do plano, mas eu não era o responsável, o falecido Anfrísio que se encarregava de tudo”. Ao ser questionado quanto ao cargo de vice-presidente, afirma, “queriam o meu nome e o conhecimento jornalístico apenas, a rádio comunitária queria trazer para a Boca um aspecto cultural”.

Dentre as exigências da lei da concessão da rádio está a necessária renovação de contrato e atualização de dados. Se isso não ocorre, o Ministério da Comunicação caça as concessões. É o que aconteceu com mais de 130 rádios comunitárias na virada do ano passado para 2019. Segundo portaria do órgão, a maior parte dos encerramentos se deu pela falta da renovação das outorgas das emissoras. A rádio da Boca, segundo o jornalista Mazza, nunca existiu, “fiquei surpreso ao saber que está ativa, nunca fomos ao ar e pelo que sei, ninguém mais toca esse projeto”.

Sem funcionamento e com dívida com a União, a Sociedade perdeu a concessão da Rádio Boca Maldita em agosto de 2019. Uma portaria publicada pelo Ministério da Comunicação declara “perempta”, ou seja, sem efeito, a “autorização outorgada à Sociedade Civil Boca Maldita, inscrita no CNPJ nº 68.676.154/0001-31, por meio da Portaria nº 606, publicada no Diário Oficial da União de 31 de outubro de 2001, para executar o Serviço de Radiodifusão Comunitária na localidade de Curitiba, estado do Paraná”.

A portaria, assinada pelo ministro Marcos Pontes, foi publicada no Diário Oficial da União no início de agosto. O fechamento da concessão, que parece um retrocesso no acesso à comunicação, na verdade esconde uma oportunidade para que de fato uma rádio comunitária seja instalada no centro de Curitiba, já que a Rádio Boca Maldita, que deveria ser um espaço democrático e cultural no centro da cidade, acabou se tornando um ponto sem voz e de dominação política e cultural.

Falha na fiscalização das concessões

A existência de uma rádio comunitária no plano formal que nunca operou indica uma falha da fiscalização pelos órgãos oficiais, bem como a falta de informações sobre o caso, tanto pela Anatel nacional quanto pela sua regional. A reportagem do jornal Marco Zero entrou em contato com o setor de fiscalização paranaense da Anatel. A agência afirma que não tem conhecimento sobre o acompanhamento do caso Rádio da Boca. “A fiscalização estadual é feita por nós, mas no sistema tudo se encontra correto, melhor falarem com a rede nacional”, destacou a agência, sem sequer ter ciência de que a rádio tinha perdido a outorga.

De acordo com a advogada e pós-graduanda em Direito Público, Rafaela Lourenço da Silva, “o cumprimento do dever de transparência pelos órgãos públicos, fator essencial para um governo democrático, não se materializa apenas na existência de sites e portais com dados, é necessário que haja organização na informação prestada, bem como facilidade de acesso e compreensão da mesma”, afirma.

Ligação política e de elite no poder

Um dos pressupostos da rádio comunitária é a representatividade ampla da comunidade em que será instalada, com a garantia de uma programação plural, sem discriminação racial, sexual, convicções político-partidárias e intolerância religiosa. A lei que regulamenta o serviço no país é clara quando afirma que a entidade deve ser isenta.

“A entidade detentora de autorização para execução do Serviço de Radiodifusão Comunitária não poderá estabelecer ou manter vínculos que a subordinem ou a sujeitem à gerência, à administração, ao domínio, ao comando ou à orientação de qualquer outra entidade, mediante compromissos ou relações financeiras, religiosas, familiares, político-partidárias ou comerciais”, aponta a legislação.

A formação da diretoria da Sociedade detentora da licença da rádio, contudo, acende a luz vermelha pelas conexões políticas, comerciais e com o poder público.

Além de Anfrísio e Mazza, a lista de dirigentes ainda contava com nomes como do jornalista e ex-vereador Mário Celso Cunha, hoje dirigente da Copel, de Joaquim Antônio Penido Monteiro, o empresário e presidente da Associação Comercial do Paraná (ACP) Gláucio Geara, o ex-servidor público municipal Ygor Kruchowski de Siqueira, e o jornalista e imortal da Academia Paranaense de Letras Adherbal Fortes de Sá Júnior. A ata de fundação da Sociedade faz constar ainda, como orador, o nome do jurista Rene Ariel Dotti.

A conexão política na formação da Rádio Boca Maldita e da sociedade que dirige no papel a rádio consta no relatório Coronelismo Eletrônico de Novo Tipo, produzido em 2007 pelos sociólogos Venício Lima e Cristiano Lopes sobre as rádios comerciais e comunitárias em todo o país. Os pesquisadores mapearam todas as concessões em que havia algum dirigente ou integrante com conexões políticas. Alguns com mandatos há décadas nos estados e também no Congresso Nacional como senadores e deputados.

“As rádios comunitárias legalmente autorizadas, exploradas por associações e fundações, deveriam ser um dos mais importantes instrumentos para a efetiva democratização da comunicação no Brasil. Nelas deveria ser exercido o direito à comunicação por aqueles que, em geral, não o têm – até porque, muitas vezes, o desconhecem. Infelizmente, não é o que acontece”, destacam os pesquisadores no estudo.

Impedimento

O problema em não tirar a rádio do papel é que isso impede que outras rádios comunitárias atuem no espaço. Como não existem muitos sinais disponíveis para uma infinidade de rádios, as comunitárias devem usar a mesma frequência. Isso mesmo. As rádios comunitárias não podem operar com uma frequência exclusiva, sendo que o sinal é designado pelo município.

O entrave aqui é que duas rádios operando no mesmo espaço com a mesma frequência interromperia os sinais de ambas. Para resolver isso e dar conexão da rádio ao local, foi determinado que o raio de atuação de uma rádio é de um quilômetro, o que dá dois quilômetros de diâmetro. Mas na prática, pelo Ministério das Comunicações, a distância de uma rádio para outra deve ser ainda maior. Isso para resguardar a qualidade do sinal e evitar a interferência de uma na outra.

Conforme destaca o Ministério, pode ter mais de uma rádio por município ou até por bairro, tudo depende da distância de uma a outra. O que não pode é ter mais de uma em um mesmo raio.Para evitar interferências, a distância mínima entre uma estação e outra é de quatro quilômetros. Isso inviabilizaria outra rádio operando no centro de Curitiba. Ou seja, ao não operar e ficar apenas no papel, a Rádio da Boca, além de não ter voz, silenciou todas as possibilidades do centro da cidade ter uma rádio comunitária ativa tocada por outras instituições.

Rádio comunitária

Pensar em democratização dos meios de comunicação é mais que abrir as portas de rádios, canais de televisão e permitir a popularização da produção. É também pensar em como as pessoas podem ter acesso ao conteúdo de qualidade, e como elas podem definir como a melhor programação com a integração social. Estas são algumas das premissas de quem defende a democratização da comunicação. Uma das vitórias do movimento pelo acesso à produção e decisão de comunicação foi a criação do Serviço de Radiodifusão Comunitária no país, em 1998.

A lei que especifica como funciona o sistema no Brasil destaca que o serviço tem como objetivo dar oportunidade à difusão de ideias, elementos de cultura, tradições e hábitos sociais da comunidade; oferecer mecanismos à formação e integração da comunidade, estimulando o lazer, a cultura e o convívio social; prestar serviços de utilidade pública, integrando-se aos serviços de defesa civil, sempre que necessário; contribuir para o aperfeiçoamento profissional nas áreas de atuação dos jornalistas e radialistas, de conformidade com a legislação profissional vigente; além de permitir a capacitação dos cidadãos no exercício do direito de expressão da forma mais acessível possível. As rádios Comunitárias existem por meio de associações e fundações sociais sem fins lucrativos, com sede na região em que a prestação de serviço será feita.

O objetivo dessas rádios é fornecer uma opção de conteúdo voltado para a comunidade. Devem ter uma programação pluralista, podem ser divulgadas ideias, manifestações culturais, hábitos sociais, e tradições. Uma rádio voltada à comunidade, fala de certa forma, por si só. Seu objetivo principal consiste em cobrir, dar suporte, e elaborar uma programação totalmente relacionada à comunidade. De maneira geral, a necessidade mais destacada é a valorização da cultura local, além dos cuidados como publicidade e propagandas. Uma rádio comunitária fornece a opção de fala para questões sociais e assuntos que nem sempre são pautados na grande mídia.

Orientação: Professor Alexsandro Teixeira, jornalista

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