Não esqueçam de mim: prisão preventiva deve ser revista a cada 90 dias

Quase metade das pessoas privadas de liberdade ainda aguardam julgamento

O grande número de pessoas privadas de liberdade representa um desafio na sociedade brasileira. Segundo levantamento de Informações Penitenciárias do Departamento Penitenciário Nacional (Depen), com dados até julho de 2021, o país tem mais de 820 mil pessoas presas. Dentre as pessoas privadas de liberdade, grande parte ainda não passou por julgamento e está detida por prisão preventiva. O desembargador Mauro Martins, conselheiro do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em entrevista concedida ao jornal Extra, estima que 45% dos presos no Brasil ainda aguardam julgamento.

Para a diretora da Escola Superior de Gestão Pública, Política, Jurídica e Segurança da Uninter, Débora Veneral, o aumento da população carcerária se deve ao não cumprimento do que é previsto na Lei 13.964/2019, conhecida como pacote anticrime. Em seu artigo 316, a lei estabelece que: “Decretada a prisão preventiva, deverá o órgão emissor da decisão revisar a necessidade de sua manutenção a cada 90 (noventa dias), mediante decisão fundamentada, de ofício, sob pena de tornar a prisão ilegal”.

“Infelizmente nem sempre as leis no Brasil são cumpridas conforme sua proposta e descrição. E neste caso específico, nem sempre o prazo é cumprido e isso contribui ainda mais para o caos no sistema prisional, em especial, o aumento da população carcerária sem condenação”, afirma ela.
Como a prisão preventiva é aplicada quando ainda não existe condenação, o detento fica dependente da execução dos trâmites penais e de toda lentidão e imprevisibilidade da situação. No final, pode ser inocentado depois de ter cumprido longo período de reclusão.

O pacote anticrime também prevê que o juiz não poderá mais decretar uma medida cautelar, como a prisão preventiva, por conta própria. A decisão passa a depender também de requerimento do Ministério Público (MP), do delegado ou da parte que se sente sob risco. “Agora o juiz não pode mais fazer em um processo penal o que ele bem entender. Ele anteriormente poderia ler um pedido de prisão preventiva e, conforme seu entendimento, mandar prender. Normalmente o Ministério Público se manifestava, mas o juiz tinha autonomia de decisão desde o começo”, explica Jorge Rafael Matos, professor e coordenador do Curso de Direito da Universidade da Região de Joinville (Univille) – campus São Bento do Sul e doutorando em Direito no Centro Universitário Autônomo do Brasil (Unibrasil).

Uma contribuição do pacote anticrime é deixar clara qual a fundamentação que se espera de uma autoridade judiciária no processo. “Devido ao pacote anticrime, juízes voltam aos lugares de onde nunca deveriam ter saído: o lugar de escuta, de ouvir acusação e defesa colocarem suas opiniões e razões jurídicas, para a partir destas argumentações decidir”, avalia Matos.

No entanto, a alteração na legislação não tem sido suficiente para mudar uma conduta que remonta a um período marcado pelo autoritarismo e pela violação dos direitos humanos.

Para o professor, ainda está no inconsciente dos operadores do direito a lógica da prisão como regra para garantia da ordem pública, o que vai contra os paradigmas trazidos pela Constituição de 1988. “O Estado deve ter todo trabalho e obrigação de demonstrar que a pessoa é culpada e, no final de todo o processo, que deve contar com ampla defesa, aplicar a pena de prisão”, comenta.

Antes de decretar uma prisão, o juiz deveria verificar se nenhuma das outras hipóteses de medida cautelar é útil ou válida para o processo. No entanto, muitos juízes consideram que as demais medidas cautelares não são suficientes por conta da gravidade do crime praticado e executam prisões sem justificativa de tal ineficiência. “O direito penal deve ser mínimo, interferir minimamente na vida das pessoas, porque ele já causa bastante estrago. Deve ser utilizado com bastante parcimônia, como último recurso”, contrapõe Matos.

Para o professor, é preciso equilibrar a ideia de liberdade com a noção do processo criminal como um instrumento de defesa do cidadão e garantia da segurança pública. “Esse é o nosso grande desafio, encontrar essa balança”, avalia.

Cicatrizes jurídicas

As regras do direito processual penal brasileiro datam de 1941, período marcado pelo Estado Novo, como é conhecida a fase do governo ditatorial de Getúlio Vargas. Nessa época, foi criado o Código de Processo Penal (CPP), recheado de legislações repressoras e punitivas de um país de governo autoritário, mas que ainda norteiam nossa estrutura de condenação.

O CPP foi criado sob influência da codificação processual penal italiana, da década de 30. Mais de 80 anos depois, ainda são utilizados estes requisitos e fundamentos para embasar a determinação de uma prisão em nosso país, o que inclusive diverge de princípios constitucionais.
Promulgada em 5 de outubro de 1988, a Constituição da República Federativa do Brasil trouxe novas referências, como liberdade, direitos humanos e democracia. No entendimento de Matos, o CPP diverge desses valores ao preconizar o caminho da restrição da liberdade como sentido de ordem da segurança pública.

Além disso, outros instrumentos de força legal, como o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e o Pacto de São José da Costa Rica, adotados pelo Brasil em 1992, proíbem que as pessoas sejam segregadas sem um justo motivo e sem que o caso seja exposto claramente, face a face, na presença de uma autoridade. No entanto, de acordo com Matos, o vai e vem de ofícios que é realizado na prática trata a execução de muitas das prisões preventivas como mera formalidade, retirando o direito de escuta e avaliação da gravidade dos fatos entre juiz e acusado.

O contexto da aplicação severa da restrição da liberdade civil, em favor da garantia da ordem pública, descrita no CPP, não é mais cabível para sociedade atual. “O que percebemos de concreto em relação ao CPP, é que a liberdade é uma exceção. Um caminho mais fácil de sentido de ordem da sociedade e de segurança pública, mas que atualmente não faz mais sentido. Temos que fazer outras contas, pois os custos financeiros e sociais de uma pessoa presa não entram mais na balança simples de 1941”, explica.

Hoje, o Estado possui outras formas legais de punição aos infratores, fora do cenário penitenciário, mas que ainda não ganharam o merecido espaço dentro das tomadas de decisões finais dos juízes brasileiros.

Para ele, os movimentos para alterar esta ordem foram muito tímidos e a prisão temporária ainda é um dos instrumentos cautelares mais utilizados. A necessidade de revisão da prisão a cada 90 dias fica apenas no papel. “Na prática, a medida ainda é utilizada como mera formalidade”, afirma Matos. Ainda é necessária uma análise mais criteriosa a partir dos direitos fundamentais e dos pactos internacionais.

Apesar da necessidade de revisão periódica, se o magistrado não se manifestar dentro dos 90 dias não ocorre a liberdade automática do réu. “A ideia é incomodar o juiz para que todo aparato do Estado mostre a real necessidade de manter essa pessoa presa, despertando a percepção dele perante a quantos seres humanos estão encarcerados por suas ordens, se não cai no esquecimento”, conclui.

Orientação: Larissa Drabeski (jornalista e professora)

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