Por um Judiciário que olhe, veja e repare

A juíza Fernanda Orsomarzo conta como ir para uma cidade pequena a obrigou a encarar a pobreza de frente e a entender melhor a função do Judiciário. "A magistratura deve ir além do mero formalismo legal", diz ela em sua coluna de estreia.

Ingressei na magistratura em 2014. Eu, estudante pertencente a uma típica família classe média paulistana, finalmente assumiria o cargo de juíza de direito no Paraná. O concreto da São Paulo cinza e impessoal que me abrigou desde a infância daria lugar a um novo universo de descobertas e experiências no interior paranaense.

Passados quase cinco anos, muita coisa mudou. A idealização da função transformou-se num intenso sentimento de impotência frente aos tristes casos pelos quais sou responsável como julgadora. E, como num piscar de olhos, todo aquele cenário sonhado por mim cedeu espaço à realidade. Uma dura e cruel realidade de exclusão e abandono estatal perante seus cidadãos.

É certo que a pobreza e a marginalização em São Paulo podem ser vistas a olho nu, sem qualquer esforço, vagando no asfalto quente em forma de menino de rua; porém, a metrópole também esconde grande parte de seus problemas nas periferias. Foi por meio desse processo de invisibilização e silenciamento que, hoje diagnostico, nunca antes havia me sentido responsável pela tragédia social ao redor. Juntamente à parcela privilegiada da qual fazia – e ainda faço – parte, seguia a vida corrida dos grandes centros, alienada em torno das minhas preocupações e praticamente insensível ao outro, ao melhor estilo já definido por Saramago: “cegos que vendo, não veem”.

A cidade de pouco mais de 5 mil habitantes em que iniciei minha carreira foi o princípio do choque. Não havia como esconder a miséria nas periferias. De repente, ela – a miséria – sentou-se à minha frente e me encarou diretamente, materializada na pele queimada e rachada do trabalhador rural, no olhar desesperado do preso e da mãe do preso, no corpo frágil da criança desnutrida, na cabeça baixa do adolescente analfabeto. Era impossível não enxergar.

Dei-me conta, então, de que, para além da indiferença e da alienação, residia em mim o medo. O medo cegava. E a cura para a cegueira não residia apenas no ver, mas no notar, no entender. Recorro novamente ao saudoso mestre Saramago: “O medo cega… são palavras certas, já éramos cegos no momento em que cegamos, o medo nos cegou, o medo nos fará continuar cegos (…) Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara”.

Para além da passividade perversa perante o sofrimento alheio, e digo perversa porque, ainda que inconsciente, é parte indissociável do processo de silenciamento e naturalização das dores do outro, a cegueira tende a nos tornar pessoas mesquinhas e cruéis. Ao ignorarmos as particularidades do ser, utilizando parâmetros próprios sobre certo/errado a partir de nossas vivências e, pior que isso, como sinônimo de moralidade, recusamo-nos deliberadamente à compreensão do próximo como indivíduo único. Silenciamos seu histórico de vida, desprezamos suas experiências e traumas. Fechados na bolha de nossas pacatas vidas de “cidadãos de bem que pagam seus impostos”, seguimos cegos e apáticos, certos de que muito fazemos para merecer nosso conforto, enquanto uma imensa massa de desgraçados é, além de invisibilizada, massacrada e culpada pela vida precária que leva.

A cidade de pouco mais de 5 mil habitantes em que iniciei minha carreira foi o princípio do choque. Não havia como esconder a miséria nas periferias.

Mesquinhos e cruéis, acomodamo-nos. Tal como o médico que sequer toca o paciente para diagnosticar a moléstia que o acomete, muitos de nós, profissionais que lidam com as aflições humanas, tratamos a tragédia daquele que nos busca como “mais uma”. O problema é que, especificamente para alguém da área o Direito, a solução, na maior parte das vezes, não se encontra nos livros, nos códigos ou na jurisprudência, mas, voltando ao início do texto, na cura da cegueira moral que nos acomete, ou seja, na capacidade de olhar, ver e reparar. A partir daí percebemos que nenhum caso é só mais um caso.

Como exemplo, trago aqui uma passagem. Na audiência de custódia, uma jovem presa em flagrante e que estava sob efeito de alguma droga ou já no processo de abstinência, tremia e suava, balbuciando palavras sem sentido em meio a um choro doído e contínuo. Policiais que a escoltavam relataram que era dependente química desde a infância. Friso: desde a infância.

Questionamos se tinha interesse no tratamento médico. Ela prontamente aceitou. A mulher saiu do fórum não na viatura, mas na ambulância, acompanhada de enfermeiros, não de policiais. Como não havia vaga imediata na clínica de recuperação, passou uma noite no hospital da cidade, onde comeu, tomou banho e descansou.

Essa mulher poderia não ter sido vista e, mais que isso, notada pelos policiais, pela promotora de justiça, pelos médicos, por mim. Poderia ter sido descartada, jogada na vala comum da letra fria da lei e dos códigos. Felizmente, não foi.

Sinto, nesses meus quase cinco anos no cargo, que a magistratura deve ir além do mero formalismo legal que engessa e limita. A dignidade humana não pode ser burocratizada ou condicionada. Idealizo um Poder Judiciário consciente de seu papel garantidor de direitos, que extravase cada vez mais as portas do gabinete para conhecer o mundo que se revela lá fora. Olhar, ver e reparar. Esse é o nosso papel e a nossa responsabilidade, como seres humanos e profissionais, na caminhada rumo a uma sociedade mais livre, justa e solidária.

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