Pandemia, aglomerações e a banalidade do mal

Achamos que a pandemia traria solidariedade, mas nem sempre é isso que vemos

Em um mundo profundamente desigual, assolado pela COVID-19 e cada vez mais indiferente ao coletivo, falar em morte tornou-se algo banal. É bem verdade que a morte de alguns jamais foi sentida pela sociedade – corpos indígenas, negros, pobres e periféricos experimentam a barbárie na carne desde que a “civilização” aportou por essas bandas, sem qualquer sinal de empatia ou comoção por parte dos setores privilegiados. São eles, os corpos dessa gente acostumada à perda e à desgraça, o alvo máximo da tortura na porta do supermercado à luz do dia, da mira do fuzil na “cabecinha”, da face mais vingativa e genocida de um Direito Penal seletivo e racista. É o frágil corpo negro da pequena Alice que a bala perdida teima em encontrar, o destino do disparo certeiro que banhou de sangue inocente o colo da mãe que embalava a filha na chegada do Ano Novo. Em 2021 Alice completaria 6 anos (sobre)vivendo no país em que crianças e adolescentes negros representam 75% das vítimas de mortes violentas.

É certo, pois, que a convicção escravocrata que aniquilou, simbólica e concretamente, a existência negra, persiste – ainda que negada – e continua a definir quem deve morrer e quem deve viver. Como resultado, não só nos acostumamos às notícias das mortes de homens e mulheres negros e pobres, como legitimamos e aceitamos o genocídio promovido nas periferias brasileiras como política oficial de Estado. A exceção existencial imposta aos sem lugar, a violência em face daqueles condenados à zona do não ser, não nos assombra ou impressiona.

Mais recentemente, contudo, a pandemia de COVID-19 que assola o mundo fez com que os mais otimistas previssem, em meio a tanta dor e sofrimento, uma luz de esperança à humanidade. Dentre as notícias sobre o assustador número de mortes causadas pelo vírus, sobre a exaustão dos profissionais da saúde e a falta de leitos nos hospitais, onde pessoas morriam sufocadas e sem atendimento, surgiam casos que, apesar de tristes, inspiravam-nos a enfrentar a pandemia e a dela sairmos como pessoas melhores. Na Bélgica, uma senhora de 90 anos faleceu no final de abril de 2020, recusando-se a utilizar um ventilador mecânico para cedê-lo a alguém mais jovem. O inimigo invisível faria, segundo chegamos a pensar, com que o sentimento de igualdade aflorasse entre nós. O medo, a angústia e a solidão atingiriam todas classes, cores e religiões, e assim, despedaçados perante um mar de incertezas e de perdas, deixaríamos nossas bolhas, condomínios e palácios para, enfim, ampararmo-nos uns aos outros em torno das nossas fragilidades, construindo novos laços de solidariedade, respeito e compaixão.

A previsão dos otimistas, contudo, mostrou-se mais que ingênua. Um devaneio, diriam os pessimistas (ou realistas). À medida que corpos e mais corpos eram enterrados, que covas eram abertas e famílias tolhidas do ritual da despedida de seus mortos, à medida que a pandemia mostrava sua face mais devastadora, tornou a surgir, como que do esgoto, toda aquela sujeira a que estávamos acostumados – e que pensamos, num lampejo de insanidade, seríamos capazes de neutralizar. Teorias da conspiração, agressões a profissionais da saúde, desprezo à ciência e à vida. Como que hienas carniceiras à espreita da tragédia, oportunistas saíram de suas tocas e passaram a enxergar a pandemia como mais uma brecha para exporem ao mundo seu desdém absoluto pela dor alheia. Indiferentes ao sofrimento, pisam, ironizam e riem sobre os mais de 200 mil corpos de cidadãos brasileiros vítimas da COVID-19. Lotando bares e festas de Final de Ano, rastejando nas redes sociais em busca de “likes” – e muitas vezes utilizando-se de cargos públicos para tanto -, essa gente carente e egoísta tem, como cenário à doentia vontade de aparecer e ostentar sua ignorância e cafonice ao público, 200 mil cadáveres. Festas para 500 pessoas que dançam em cima de 200 mil corpos.

“O Inferno está fechado e os demônios estão aqui”. A frase de Shakespeare, em A Tempestade, cairia como uma luva ao momento em que vivemos. E, ainda que não me atraiam discursos maniqueístas em torno do bem versus o mal, não há como fugir ao reducionismo; é preciso dar nome aos bois. O que esses grupos e indivíduos com apelo público vêm promovendo tem, sim, um nome que precisa ser dito: MALDADE. Seja lá o que visem (seguidores nas redes, votos, promoção no trabalho, candidatura política, extravasar o estresse do isolamento em seus iates e jatinhos particulares), é a MALDADE que move essa turma que sabota medidas de prevenção, que instiga a população a se aglomerar, que coloca em xeque a ciência e que zomba da morte. E fazem isso tudo, claro, escondidos atrás do manto sagrado da liberdade de expressão, que agora tem servido de escudo aos covardes. O postulado máximo da democracia, da qual, sabemos, muita dessa gente não é entusiasta, vem sendo evocado para acobertar discurso de incitação à morte.

Procurando desmitificar a questão do mal e compreender as atrocidades cometidas pelo regime nazista, Hannah Arendt descreve, em sua obra “Eichmann em Jerusalém”, o julgamento do oficial nazista Adolf Eichmann, responsável, dentre outras tarefas, pelo transporte de prisioneiros aos campos de concentração. A questão central na obra de Arendt, de modo bastante resumido, é retratar o oficial alemão não como uma figura monstruosa ou dantesca, mas como um homem normal, um indivíduo medíocre que, em seu agir, banalizava o mal e, sem qualquer senso de questionamento, entendia que estava apenas a cumprir a lei no desempenho de sua funções. Eichmann não era tolo, tampouco perverso ou sádico, mas um simples burocrata incapaz de notar a realidade ao redor e de se compadecer do sofrimento alheio. Durante seu julgamento teria declarado, inclusive, que sequer nutria ódio pelos judeus.

Nas palavras de Arendt, “quanto mais se ouvia Eichmann, mais óbvio ficava que sua incapacidade de falar estava intimamente relacionada com sua incapacidade de pensar, ou seja, de pensar pelo ponto de vista dos outros. Não era possível nenhuma comunicação com ele, não porque mentia, mas porque se cercava do mais confiável de todos os guarda-costas contra as palavras e a presença de outros, e portanto contra a realidade enquanto tal (ARENDT, 2013, p. 62).

Para a autora, o oficial nazista não era capaz de travar o diálogo “entre mim e mim mesmo que, desde Sócrates e Platão, chamamos de pensar” (ARENDT, 2004, p. 107). Assim, o exercício do mal de modo automático e gratuito, que leva pessoas simples e comuns a praticarem as mais horrendas atrocidades, seria fruto da incapacidade de pensar, de compreender a realidade e de se colocar no lugar do outro. É esse perigoso fenômeno que Arendt denominou banalidade do mal, chamando a atenção sobre o cuidado que se deve ter para não cultivarmos “um Eichmann dentro de cada um de nós” (ARENDT, 2013, p. 309).

Arendt alertou e, infelizmente, continuamos a diagnosticar que ainda têm lugar em nosso meio a incapacidade de pensar e, consequentemente, uma profunda indiferença para com o sofrimento alheio. Aqui repousa a banalidade do mal, o desdém social perante as execuções de jovens negros e periféricos, as cadeias superlotadas de outros tantos jovens negros e periféricos, os campos de imigrantes e refugiados ao redor do mundo. O mal que nasce da condescendência à barbárie, da falta de reflexão sobre as consequências de atos irresponsáveis, da acomodação, do descaso perante o terror e a tragédia alheia. Da falta de memória e de aprendizado com o passado.

O mal, contudo, não é algo inerente ao ser humano, defende Arendt. O mal não define sua essência. Como seres racionais que somos, há possibilidade de pensar, questionar e escolher não ser parte da maldade vigente, como fizeram alguns alemães e até mesmo oficiais nazistas ao salvarem da morte milhares de judeus. A reflexão e a resistência, portanto, mostram-se como um caminho possível, uma saída à desumanização e à escassez de reflexão empática.

Resistamos a mais essa batalha da humanidade imposta pela COVID-19 e agravada por aqueles que teimam em zombar sobre os corpos de 200 mil brasileiros. Não porque somos seres puros, perfeitos e destituídos de maldade, mas porque escolhemos pensar. Porque temos respeito. Porque temos caráter.


ARENDT, H. Responsabilidade e julgamento. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

ARENDT, H. Eichmann em Jerusalém um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo: Companhia das Letras, 2013

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