Onde estava o juiz?

É chegada a hora de chamarmos o Estado Brasileiro à responsabilidade, de conclamarmos os atores do sistema de justiça a exercerem seu mister constitucional, sob pena das gerações futuras nos fitarem e questionarem: “onde vocês estavam?”

Em tempos de isolamento social, na solidão imposta pela necessidade de nos afastarmos uns dos outros, livros, shows e filmes apresentam-se como preciosas companhias, preenchendo um pouco do vazio deixado pelos beijos, abraços e convívio suspensos. Mais que uma companhia, a arte tem servido como um analgésico frente à dura realidade de morte que nos assombra.

Fomos bombardeados, nos últimos 15 dias, por inúmeras e devastadoras notícias. O Brasil atingiu a marca de mais de 30.000 mortos por coronavírus. 30.000 rostos, 30.000 sonhos, 30.000 pessoas que eram o amor de alguém. Nos Estados Unidos, o cidadão negro George Floyd morreu, suplicando por ar, sob o joelho de um policial branco. No Brasil, o pequeno Miguel despencou de uma altura de 35 metros quando chamava pela mãe, uma empregada doméstica negra que não pôde ficar em casa durante a pandemia. E ninguém cuidou do filho da empregada enquanto ela cuidava do “pet” da patroa…

À procura, então, de um respiro, e no privilégio de poder estar em casa, recorri à sétima arte numa rápida e ilusória tentativa de fuga de tudo aquilo que tem minado minhas esperanças em nós mesmos. Zapeei os filmes à disposição e logo um chamou a atenção: Na Própria Pele – O Caso Stefano Cucchi. O que eu não sabia, contudo, é que meu escape fosse se transformar justamente em banho de realidade.

Cena do filme Na Própria Pele – O Caso Stefano Cucchi.

Sem receio de dar “spoiler”, ou seja, de revelar o enredo do filme e estragar a experiência daqueles que ainda não o assistiram, quero apenas trazer breves reflexões sobre uma pergunta que me acompanhou durante toda a exibição. Falar em “spoiler”, aqui, é até um pouco descabido, já que o enredo conta uma história conhecida mundialmente, porque baseada em fatos reais, sobre a prisão e morte do jovem Stefano Cucchi. Então, garanto que caso o leitor decida assistir ao filme, entenderá que esses detalhes por mim expostos não frustrarão sua experiência.

Em 2009, Stefano Cucchi foi flagrado portando drogas em Roma e detido por policiais. Após alguns dias sob a custódia do Estado, Cucchi faleceu, revelando a autópsia que o italiano de 31 anos e 1,76m de altura pesava, no momento da morte, 37 quilos. Seu corpo apresentava diversos hematomas, a maioria no rosto. O deslinde da história pode ser encontrado, além do filme, em diversos noticiários nacionais e internacionais.

No sistema penal italiano, o indivíduo preso em flagrante é logo apresentado ao juiz, numa espécie de audiência de custódia. Com Cucchi foi assim. No dia seguinte à sua prisão, foi apresentado, com machucados visíveis na face, à autoridade judiciária, em ato que contou com a presença do Ministério Público e da Defesa. A partir, então, desse instante do filme, passou a ecoar na minha cabeça a pergunta: “onde estava o juiz?”. A cada cena, a cada gesto, a cada diálogo, eu me questionava: “onde estava o juiz?”.

Já mergulhada no mundo real, saí em busca de dados. Em 2018, 1.424 pessoas morreram no Brasil sob a custódia do Estado. Segundo levantamento do jornal O Globo, entre os anos de 2014 a 2017, ou seja, em 3 anos, ao menos 6.368 homens e mulheres morreram nas penitenciárias do país. Das mortes, 3.670 são classificadas como “naturais”, supostamente originadas de problemas de saúde; 1.094 como “violentas”, ou seja, presos que foram assassinados; 266 decorrentes de suicídio e 472 como “causa indeterminada ou desconhecida”. Alguns dos dados fornecidos pelos estados não estavam completos, por isso a defasagem com o número total.

Não conhecemos os rostos, os nomes e as histórias dessas pessoas. À falta de informações, contentamo-nos com números e classificações inumanas. Fôssemos uma sociedade verdadeiramente democrática, guiada pelo valor-fonte da dignidade humana, inconcebível seria, por exemplo, aceitar que pessoas padeceram sob a custódia do Estado por “causa indeterminada ou desconhecida”. Mas, acostumados que estamos à barbárie, seguimos naturalizando a existência despida de todo direito e significação política, aceitando, passivos, a eliminação daqueles lançados à zona de anomia e de indiferença à morte que define os estabelecimentos prisionais brasileiros.

Protesto nos EUA contra a morte de George Floyd em uma ação policial. Crédito da foto: Kelly Lacy/Pexels

Em setembro de 2015, tal quadro de desumanização fez com que o Supremo Tribunal (STF) reconhecesse, na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 347, a existência de um “estado de coisas inconstitucional” no sistema carcerário brasileiro, definido por violações generalizadas e sistemáticas de direitos fundamentais da população privada de liberdade e pela reiterada inércia estatal em modificar tal conjuntura. No mesmo julgamento, a Corte determinou a realização obrigatória de audiências de custódia, com a apresentação do cidadão preso à autoridade judiciária em até 24 horas contadas do momento da prisão. Os ministros, à época, alertaram para a necessidade de uma tomada de responsabilidade por parte do Poder Judiciário frente ao caos carcerário, sobre o qual recai o papel de exigir, fiscalizar, incentivar e orientar os demais Poderes na elaboração e execução de políticas públicas asseguradoras da dignidade humana, bem como instigar os próprios magistrados a voltarem sua atuação à missão constitucional garantidora de direitos que lhes é reservada.

Atravessamos, atualmente, uma grave crise sanitária e humanitária. O coronavírus tem matado mais de uma pessoa por minuto no Brasil. Dentre as principais medidas de prevenção, apontou-se o recolhimento social e a restrição de aglomerações. Ora, sabendo que há um déficit de mais de 300 mil vagas nos estabelecimentos prisionais brasileiros, não é preciso sequer se dar ao trabalho de pisar no chão de uma cadeia para prever o que está reservado àqueles que se encontram atrás das grades – 30% ainda sem julgamento. O “spoiler”, aqui, é inevitável. Bem por isso, e atento ao estado de coisas inconstitucional dos presídios brasileiros, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) editou a Recomendação 62/2020, veiculando medidas preventivas à propagação da infecção no âmbito dos sistemas de justiça penal e socioeducativo e conclamando magistrados a reduzirem a superlotação nos presídios e unidades de internação de adolescentes. Tudo isso, claro, mediante um rigoroso controle, feito por meio de análises particularizadas, ou seja, caso a caso.

Todavia, nesse cenário de grave pandemia que enfrentamos, as relações de poder que se reproduzem sobre a questão carcerária e populações vulneráveis tornam-se ainda mais latentes. O filósofo camaronês Achille-Mbembe propõe o conceito de “necropolítica” para denominar uma tecnologia do poder que produz e gerencia a morte por meio da instrumentalização generalizada da existência humana e da aniquilação material de corpos e populações. A necropolítica, segundo o autor, refere-se às formas contemporâneas de “subjugação da vida ao poder da morte”, pelas quais são criados os “mundos de morte” em que “vastas populações são submetidas a condições de vida que lhes conferem o status de mortos-vivos”. Enquanto técnica da necropolítica moderna, a criação da figura do inimigo – e os sentimentos de medo e terror a ela inerente – revela-se fundamental para a desumanização do outro e legitimação de seu descarte.

Presos produzem máscaras para prevenção ao coronavírus. Crédito da foto: Joel Rodrigues / Agência Brasília

Por mais negada e ocultada que seja, a técnica de escolher aqueles que sobreviverão e aqueles sucumbirão à pandemia encontra-se materializada na realidade das parcelas marginalizadas, dentre elas a massa carcerária, formada por milhares de “inimigos públicos”. À mercê das autoridades que têm o poder de definir quem morre e quem vive, aproximadamente 800 mil corpos aguardam, reclusos, seu sentenciamento. As críticas e a postura de total indiferença frente à Recomendação do CNJ, contudo, já nos dão uma ideia do massacre a atingir não somente os corpos jovens, negros e periféricos abandonados àquilo que Giorgio Agamben chamou de “vigência da lei sem significado”, mas também agentes carcerários e demais trabalhadores das penitenciárias brasileiras.

Somente no estado de São Paulo já foram registradas 22 mortes ocasionadas pelo coronavírus, sendo 10 agentes penitenciários e 12 detentos. O Distrito Federal registrou 2 mortes, ultrapassando a marca de 1.000 infectados – 808 presos e 235 agentes. Quem responderá por essas vidas – ou mortes? Quem se responsabilizará?

Num cenário em que a realidade se encontra com a arte, pergunto-me quantos Stefano Cucchi ainda produziremos nos mundos de morte das cadeias brasileiras, habitadas por vidas supérfluas, destituídas de valor e por cuja morte ninguém se vê obrigado a responder. Quantos corpos machucados, quantos mortos-vivos nos serão apresentados e solenemente ignorados?

A História não nos perdoará. É chegada a hora de chamarmos o Estado Brasileiro à responsabilidade, de conclamarmos os atores do sistema de justiça a exercerem seu mister constitucional, sob pena das gerações futuras nos fitarem e questionarem: “onde vocês estavam?”. Dessa culpa não haverá arte que nos salve. Dela não haverá fuga.

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