Tem música no domingo de manhã

Enquanto eu estudava, ficava imaginando como Beethoven tinha um conceito musical sobre esperança e recuperação

Aos poucos a música de concerto vai retornando a vida presencial em Curitiba. No mês de setembro, o coro e a orquestra da Camerata Antiqua de Curitiba voltaram ao palco da Capela Santa Maria e o público à sua plateia. Novembro será o mês de retorno dos concertos presenciais da Orquestra Sinfônica do Paraná. O Concerto Polonês está marcado para o dia 17 de novembro e comemorará 150 anos da imigração polonesa no Brasil.

Mas enquanto o dia 17 não chega, a orquestra preparou um “esquenta” para seu público. Neste domingo, dia 31/10, a orquestra transmitirá pelo YouTube um concerto ao vivo, no tradicional horário das 10h30, para relembrarmos como é levantar aos domingos de manhã para ouvir música. Neste concerto poderemos prestigiar a abertura da ópera Sigfried, de Richard Wagner, e a Sinfonia n.º 7, de Beethoven.

Nos próximos parágrafos farei uma breve narrativa sobre a obra de Beethoven e como a imagino. Com isso, tenho a intenção de te aproximar da obra, te encorajar a ouvir ou reouvir, mas caso você ache uma barbárie tudo o que eu disser, lembre: sou uma ouvinte com instrução sobre música, mas apenas uma interpretação dentro da infinidade de possibilidades de uma obra de arte, não desista de ouvir por minha causa!

Acho importante contextualizar que Beethoven escreveu esta sinfonia enquanto estava fazendo um tratamento de saúde. Sua estréia se deu em 1813, num concerto que homenageava os soldados feridos na Batalha das Nações. Teve ótima recepção do público na época, e, quando era tocada em conjunto a outra obra do compositor, A Vitória de Wellington (que também teve estreia no mesmo concerto), a Sinfonia n.º 7 era considerada a própria alegria, a celebração da vitória.

Eu não me lembro quando foi que ouvi esta sinfonia pela primeira vez, mas lembro quando abri sua partitura. Era 2017, eu ia fazer a prova para ser regente assistente da Orquestra Filarmônica da UFPR. O teste consistia em reger uma parte desta sinfonia e fazer um breve ensaio com a orquestra.

Eu já tinha feito a prova da Filarmônica da UFPR duas vezes, e havia sido aprovada, então eu já estava um tanto vacinada do nervosismo, mas nunca tinha conduzido esta obra, o sentimento era complexo. Durante a espera fiquei torcendo para que me fosse destinado o segundo movimento da obra – tive sorte.

Depois dessa experiência, criei um afeto por essa sinfonia. Estudar uma obra envolve torná-la parte de si. E eu, enquanto estudava, ficava imaginando como Beethoven tinha um conceito musical sobre esperança e recuperação. A surdez do compositor já começava a dar sinais há algum tempo, e mesmo que Beethoven seja conhecido por alguma rispidez e melancolia, ali eu via o quanto ele desejava a vida, e a percebia como real e complexa. Quando eu me deparava com a construção da Sétima eu ficava admirada com a sua resiliência.

Jamais saberemos se Beethoven sentia isso mesmo, mas imaginar essa possibilidade me aproximou da obra, perceber que para ele esperança era uma construção de longo, longuíssimo prazo. Em sua grande forma, o compositor leva 3 movimentos até nos dar certeza de que aquilo é alegria, afinal sentimentos nunca estão sozinhos. Sentimos a vida em simultaneidade.

Talvez você esteja se perguntando como é que eu cheguei nessa conclusão e eu te proponho que ouça a obra e repare que:

1) No fim do primeiro movimento há um ápice onde podemos ouvir o principal tema melódico acontecendo em um tutti orquestral forte, e então, há um acorde mais longo dos que os anteriores, que suspende o tempo e logo em seguida outro acorde pode causar uma sensação um pouco estranha, suave, mas não doce. Em seguida ouvimos um solo de oboé retomando o tema que ouvimos várias vezes até ali, mas repare se não está um pouco diferente. Para mim, ali Beethoven nos mostra que mesmo os lugares seguros do passado, quando ressurgem na vida, podem nos surpreender.

2) O segundo movimento pode soar como: a solenidade de uma caminhada que nos surpreende pela paisagem, e faz perceber como tudo no mundo é infinito em si mesmo. Acho curioso como Beethoven amplia um mesmo tema e o transforma e o engrandece. Essa é uma característica dele, pegar uma melodia bem pequenininha e ampliar o máximo que puder, mas nesse movimento há uma paciência em  fazer isso – me emociona.

3) Observo uma complexidade um pouco cômica no terceiro movimento. Para mim nesta música, mais do que nas outras, fica explícita as possíveis ambiguidades do sentir. Beethoven consegue imprimir agitação, nervosismo e alegria simultaneamente. E para ser honesta, eu associo essa música a uma criança fora de casa, brincando e se divertindo, mas com sono e não sabendo lidar com essa sensação. Num dado momento da música essa criança dorme e a mãe comemora, mas ela acorda e retomamos o sentimento.

4) A mistura de classicismo vienense e romantismo alemão resulta em uma felicidade particular ao quarto movimento. Para mim a sensação é de que alguém está tão feliz que sente seu corpo repleto de energia a ponto de dar piruetas e talvez ficar zonzo, passar mal, mas ainda assim, permanecer radiante. Como se nada pudesse o machucar.

Espero que minha descrição tão particular desperte sua curiosidade, mas mesmo que não aconteça, não deixe de prestigiar esta obra, seja no concerto de amanhã ou em qualquer outra oportunidade.

Link para o canal de YouYube da orquestra.

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