O sertanejo na Orquestra Sinfônica do Paraná te incomoda?

Mais do que oferecer determinismos elitizados, precisamos abrir diálogos plurais com a orquestra com a qual contribuímos

No dia 24 de maio, terça-feira desta semana, li aqui no Plural um texto do Rogerio Galindo intitulado: “Ratinho Jr. faz Orquestra Sinfônica do Paraná tocar música sertaneja”. Depois, escrevi para o jornalista e perguntei o que ele achava de continuar o assunto, usar o espaço da minha coluna para observar as coisas da perspectiva de alguém que trabalha com cultura, e com essa cultura específica. Galindo me respondeu: “Manda bala!” – e cá estou.

Desmonte à cultura

Quando vi o título e a gravata do texto, fiquei curiosa para entender como Galindo desenvolveria o assunto. Afinal, como ele ressalta, é a primeira vez em quase quatro décadas que a Orquestra Sinfônica do Paraná (OSP) se dedica a esse repertório. Deparei-me com uma crítica sobre a forma com que a atual gestão do governo lida com a cultura do estado, usando a orquestra de palanque eleitoral enquanto oferece à população um concerto com repertório popular.

Uma tática populista que, para Galindo, fere gravemente os propósitos culturais da orquestra. Ele escreve: “A ideia de usar uma orquestra de músicos eruditos é um desplante, uma zombaria com o contribuinte, que paga por lebre e leva gato no lugar. Os impostos que pagamos para gastos em cultura estão todos os dias sendo desviados pelo atual governo para fazer populismo na tevê estatal, na rádio, no Guaíra e, agora, na orquestra”.

Galindo também ressalta que o atual governador tem um descaso com a cultura geral, mas em especial com a erudita. O jornalista sustenta que gêneros populares não precisam de apoio do governo, porque eles enchem estádios mesmo com ingressos caros. Então ter uma orquestra estatal tocando esse repertório, para Galindo, é um disparate.

Fiquei incomodada.

Erudito?

O Brasil é o único lugar do mundo que chama a música clássica europeia de erudita. Confesso que para mim esse termo é bem problemático, pois erudito é tudo aquilo que é vasto em cultura. Porém, cotidianamente, essa palavra é associada a uma cultura específica, que está longe de ser a nossa. Música orquestral não é algo que representa o Brasil, nem o Paraná. Poderia ser se fosse de interesse das pessoas construir esse cenário. Mas, da mesma forma que a ópera é a música popular da Itália do século 19, outras músicas são as músicas populares de seus tempos e espaços. Aqui no Paraná a cultura é do sertanejo, e isso faz sentido na vida das pessoas.

Esses dias me deparei com um vídeo do pesquisador Thiago de Souza, mais conhecido como Thiagson. O professor de música clássica e doutorando em funk faz a seguinte comparação: “Brasileiro fazendo música clássica é como sul-coreano fazendo samba ou pagode. (…) Pessoas de contextos sociais e geográficos diferentes podem até dominar muito um estilo musical, mas a música não é só domínio técnico, música é identidade, pertencimento”.

A Orquestra Sinfônica do Paraná (OSP), em 37 anos de atuação, ainda não tinha dedicado seu tempo à cultura popular do estado que ela representa. Fiquei feliz que os concertos estavam cheios. Lamento muito que seja nessa circunstância política, mas, se essa orquestra se pretende vasta em cultura é preciso que ela esteja em contato com o que acontece cotidianamente ao seu redor.

Repertório

Brasílio Itiberê, Jocy de Oliveira, Augusto Stresser, Henrique de Curitiba, Bento Mossurunga, José Penalva e Alceo Bocchino são alguns nomes de compositores paranaenses dedicados à música de concerto, porém não vemos esses nomes na programação da OSP. Também não é frequente ver compositores brasileiros na programação da orquestra, exceto por Villa-Lobos.

Cláudio Santoro, Guerra-Peixe, Carlos Gomes, Camargo Guarnieri, Radamés Gnatalli, Gilberto Mendes, Nunes Garcia e Edino Krieger são outros dos nomes consagrados na música de concerto brasileira. Raramente os tocamos. Em geral, o repertório é composto por um cânone europeu do século 19, que me agrada muito, mas que está muito distante da maioria de nós.

Um corpo artístico é uma estrutura viva que precisa dialogar com o ambiente que ela está, especialmente se carrega a função de representar um estado inteiro musicalmente.

Talvez se mostrássemos às pessoas que gente daqui, de perto de nós, também faz música de concerto, elas chegariam perto para ver o que é, descobrir como soa e analisar se gostam. Talvez se nos concentrássemos em mostrar a diversidade e a vasta cultura que nos cerca, poderíamos ser atraentes de outras formas, e não só um povo que toca Brahms com sotaque.

Diálogos musicais

A OSP, quando colocada em comparação com outras orquestras brasileiras, é uma orquestra de atividade média. Ela oferece à população concertos. Outros corpos artísticos similares, como a Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo, a Filarmônica de Minas ou a Filarmônica de Goiás, são, além de corpos artísticos, entidades culturais de seus estados. Oferecem educação musical a músicos e à população por meio de palestras, concertos didáticos, visitas guiadas às salas de concerto, diálogos com grandes nomes da música, estreia de peças, masterclasses, entre outras atividades que aproximam a música das pessoas.

Uma orquestra de 37 anos é bastante jovem e ainda tem muito a crescer, e definitivamente não deve existir apenas para carimbar sobre o Paraná o status de “estado civilizado”. Toda cultura deve ter o direito de existir e coexistir em espaços diversos, e é o respeito que nos constrói socialmente, não a existência de entidades culturais europeias como orquestras, universidades, museus etc. Orquestras são pessoas tocando juntas, pessoas diversas, que podem tocar mais do que só uma música, que podem contemplar mais pessoas e promover encontros entre elas. 

Desejo um estado que possibilite a existência de todo corpo artístico que tenha algo a oferecer para as pessoas. Meu sonho, como maestra, é que tenhamos mais do que uma orquestra para todo o estado, mais do que um grande artista popular famoso que é “o paranaense”, mais do que um concerto por semana aos domingos de manhã.

Eu me levanto e trabalho todos os dias para poder fazer a música que faz sentido para mim e para quem está comigo. E desejo que todo e qualquer trabalhador da música tenha espaço para fazer a música que deseja, com apoio e dignidade, livre das amarras do julgamento colonial e elitizado.

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