Carta aberta aos músicos

Música é lugar de posicionamento, identidade e afirmação

Schoenberg em seu livro Harmonia posiciona a arte como: “uma simples imitação da natureza”. O autor entende que a arte, primordialmente, tem este intuito, e enquanto evolui, deixa de ser uma imitação da natureza externa e passa a ser uma representação da natureza interna. Ele aponta:

“Não representa, simplesmente, os objetos ou circunstâncias que produzem a sensação, senão, antes de tudo, a própria sensação (…). Em seu nível mais alto, a arte ocupa-se, unicamente, em reproduzir a natureza interior. Neste caso, seu objetivo é a imitação das impressões que, através da associação mútua e com outras impressões sensoriais, conduzem a novos complexos, novos movimentos.”

SCHOENBERG, p.55, 1999

Isso foi escrito em 1922, há 100 anos. De lá até aqui muito se alterou sobre o que se entende por natureza interior. Diversos cientistas sociais nos mostraram que a natureza interior que Schoenberg evoca, na realidade é uma construção social. Beauvoir já nos explicou que torna-se mulher e Foucault já nos contou sobre as estruturas de poder. Estamos sempre em situação, em contexto. Isso marca profundamente quem somos, como nos identificamos no mundo e, também, como fazemos e interpretamos arte.

Há uma mitologia ao redor da música, especialmente a entendida como erudita, que a trata como “a língua que todos entendem”. Os sons musicados de fato podem gerar sensações em todos nós. Mas não podemos ser ingênuos e esquecer que a arte, a música, vem das pessoas, e as pessoas são diversas.

O palco da música de concerto, muitas vezes, se pretende um espaço neutro. Um asilo a todas as almas, que independente de suas ações, ali estão abrigadas pela arte. Assim, protegemos diversas pessoas de ética questionável simplesmente por serem talentosas. E chegamos ao século XXI percebendo diversos problemas referentes a assédio e abuso de poder, tanto nos ambientes estudantis, quanto nos profissionais. Histórias de agressão física, assédio sexual, gritos e outras violências são recorrentes, mas “tudo bem”, porque ele toca muito ou porque ele nos ensina tudo que sabe.

A música de concerto segue reproduzindo estruturas sociais que já caíram por terra há muitos anos. Pureza, por exemplo – algo tão buscado – se associa a políticas fascistas, e não há razão para que ainda alguém se iluda de que algo é puro. Olhe ao redor!

A música é um discurso, colocado no mundo, não é neutra, nunca foi. É um tipo de gente, com uma educação determinada que se comunica com bolinhas no papel, ou que acha acordes menores tristes. Outros tipos de gente chamam isso de abstração.

Eu sou uma pessoa educada para entender essa música e mesmo assim tenho dificuldades. O mundo que está ao meu redor é completamente diferente da Europa dos séculos XVII, XVIII e XIX. Mas a história nos dá acesso, a imaginação faz parte da interpretação e da leitura e realizo esse repertório. Mas o que eu não consigo entender é como algo com tamanho potencial político se pretenda neutro.

Mais de uma vez ouvi que como maestrina eu deveria ser apolítica. Não deveria me posicionar nem levantar bandeiras. Conheço uma infinidade de colegas que se posicionam desta forma. Vários deles ainda fazem trabalhos posicionados politicamente – são colaboradores em projetos sociais, regem orquestras comunitárias, estão em grupos artísticos de exaltação a minorias – mas dizem não levantar bandeira nenhuma. Imagine fazer isso, que risco!

E assim, seguimos ensinando tudo que nos foi passado. Não só como se ler e interpretar música, mas que essa é uma música neutra, num espaço neutro e que não é nossa função, direito ou poder falar sobre quem somos, nos posicionar e muito menos apontar problemas. É esperado que consideremos essa música soberana, a verdadeira cultura, o que há de melhor socialmente, o máximo da intelectualidade musical.

É preciso reposicionar a música de concerto tradicional no mundo em que vivemos. Não quero jamais deixar de tocá-la, mas é preciso compreendê-la como fruto de uma humanidade e não de uma divindade. O cânone da música de concerto é repleto de pessoas que não somos nós: brasileiros terceiro mundistas – para dizer o mínimo. E por que não refletimos sobre quem foram essas pessoas que fizeram essa arte? Por que as consideramos soberanas, inalcançáveis e sagradas? Por que entregamos toda a nossa educação musical a elas e reforçamos seu poder em decidir se somos bons ou não?

Neutro, na sociedade em que vivemos, é sinônimo de homem, branco, cisgênero, nortista e de primeiro mundo. Eu não sou neutra e por isso percebo que algo com tantas características também não é. Sendo assim, prefiro escolher o caminho “arriscado” de me posicionar. Entendendo que para mim este é o único caminho possível.

Músicos e corpos artísticos precisam fazer sentido às pessoas que estão no mundo. Eu desejo que a música possa chegar a todos. E para isso não é preciso mudar e deixar de tocar um repertório, mas é preciso posicioná-lo, identificá-lo e humanizá-lo. Precisamos nos afirmar como somos e como atuamos no mundo para que as pessoas se aproximem. Não ter posicionamento nos faz mornos, sem graça, pouco instigantes.

Que o tempo nos traga mais orquestras feministas e menos orquestras femininas. Mais repertório histórica e eticamente informado. Mais performers posicionados e destemidos de não serem o padrão, seja lá o que isso for. Que tudo que envolve a validação de violência esteja longe da arte e que a música de concerto seja um lugar de colaboração e de democracia.

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