Como maestrina preciso estar pronta para interpretar diversos repertórios. Dentro da música de concerto existem muitas seções temporais, regionais e estilísticas que se distinguem entre si. Minha última leitura sobre o assunto foi Interpretação da Música, livro de Thurston Dart editado pela Martins Fontes. Cheguei nesse título por indicação de uma amiga quando a perguntei sobre interpretação de repertório barroco.
Até então eu ainda não havia mergulhado profundamente nesse período musical. Mas, o barroco foi um período muito profícuo musicalmente, especialmente na Itália e na França, apesar de termos também grandes nomes germânicos representando a época – como Bach e Handel. E, neste mês, me deparei com um programa barroco, inteiro composto por obras de Vivaldi. Então, chegou o momento de observar como a música se dava na Itália de 1700.
Quando temos uma partitura dessa época em mãos é preciso estar ciente de que certamente ela já foi alterada. Nada sobrevive imune às mãos humanas que fazem algo viajar no tempo. É preciso olhar com bastante atenção tudo que está no papel, consciente de que não é possível fazer a música como se fazia, afinal, estamos em outro tempo e espaço, mas também é preciso conhecer como se tocava aquela música e o que aquelas notas intendem. Como alguém que restaura quadros de Caravaggio e sabe que não temos mais as mesmas tintas, os mesmos pincéis, o mesmo ar e o mesmo tempo, mas que tenta preservar ali a lembrança, a imagem, a poética e a alma de alguém que se entregou à arte.
Dart discorre sobre duas formas de interpretar música barroca – a francesa e a italiana. E sobre o estilo italiano ele aponta: “É menos sofisticado, com menos maneirismos, menos sutil e moderado do que o estilo francês. Apresenta bem menos problemas ao intérprete atual, principalmente porque a notação usada pelos compositores italianos quase sempre significa o que diz, de modo que não requer execução especial”.
Fiquei indignada. Quando penso em música barroca penso em elegância e esse sujeito está falando que o barroco italiano é menos sofisticado, o que isso significa? Rapidamente imaginei Luís XIV – o Rei Sol francês – e Fernando II de Médici – Grão-Duque da Toscana – e entendi o autor. O barroco se caracteriza pela ornamentação. Musicalmente isso significa que é uma música cheia de notas ligeiras e apelos auditivos afetuosos. E quando penso na nobreza francesa e na nobreza italiana (os pagantes de música daquele período), preciso levar em conta o que sei sobre eles, o que ficou registrado – sua aparência.
Menos sutil e moderado do que os franceses talvez seja algo que até hoje os italianos carregam em seu estereótipo. Falar alto, ser dramática e emocionada são características que, de fato, são associadas a uma nona italiana, por exemplo. E que curioso perceber que tudo o que fazemos marca quem somos, quando e como vivemos.
A música clássica, de concerto, sofisticada e requintada, fala de um povo. Faz parte de um modo de viver confeccionado por uma cultura específica, que entende ornamentação sutil por elegância e dramaticidade por extravagância. E as músicas compostas hoje, todas elas, contam tudo sobre nós.
Sobre o/a autor/a
Ingrid Stein Fernández
Latina, feminista e musicista. Atua como regente e compositora e atualmente é mestranda em música. Se reconhece no ensaio dos sons, das palavras e dos gestos.