­A eternidade da arte está na interpretação

Quem lê está vivo e se coloca à interpretação

“A gente vai e as coisas ficam” foi a última frase do áudio que o Fellipe Teixeira me mandou antes de eu começar a escrever a coluna de hoje. Então, neste texto, vou contar um pouco da nossa história, dessa troca bonita que a gente tem, e de como a música pode ser acolhedora para corações como os nossos.

Conheci o Fellipe na prova da academia da OSESP, em 2018. Chegamos na sala São Paulo às 8h da manhã e passamos o dia todo fazendo provas, esperando resultados, ansiosos pelas próximas fases e cansados. Em ordem alfabética nossos nomes não são muito distantes, então nos testes individuais ele ia primeiro e eu sempre ficava de olho pra saber o que me esperava, e o Fellipe gentilmente me contava.

Essa prova foi uma das experiências mais ansiosas que já vivi. Lembro de sentir que eu não sabia nada de música, que jamais teria nível para ser uma boa regente. Então, depois da prova de solfejo eu já estava completamente desesperançosa de ser aprovada. Até cogitei ir embora, mas já tinha viajado até ali, então fiquei e fiz a próxima fase.

Nos colocaram em uma sala de espera onde éramos chamados um de cada vez para reger um trecho de música e sermos avaliados por isso. Levou um tempão até chegar minha vez e eu já estava muito cansada. Nem lembro do que fiz. Mas, lembro que quando saí da sala, já me organizando para ir embora, Fellipe veio e me perguntou: “e aí, como é que foi?”. Desestimulada, falei que tinha feito o que conseguia, mas que não botava muita fé. Segui me arrumando para sair e falei pra ele que eu iria a pé até a Luz, pois pegaria o avião naquele mesmo dia. O rapaz que eu havia conhecido naquela manhã olhou o relógio e me alertou que já era muito tarde para andar ali sozinha. Eu insisti que iria e ele veio junto. Anos depois descobri que ele não fazia ideia de onde estava, mas sabia que era perigoso.

Não fomos aprovados em 2018. Seguimos a vida, cada um no seu rumo. Mas estudar regência tem nichos de encontros, então seguimos em contato. Em 2020 ingressamos na turma de regência do maestro Cláudio Cruz. Ali estreitamos o laço, construímos amizade e nos unimos em lamentar sobre como algumas coisas são. A gente se uniu por discordar do que acontece em nosso entorno. A partir disso observamos nossas similaridades e diferenças.

Sinto que o que mais nos une é que somos músicos populares. Isso significa que nossa base de educação musical vem da música popular, e não da música clássica europeia. Fellipe é saxofonista e eu violonista. Antes de nos apresentarem orquestras, tocamos em bandas. Pensamos música de maneira um pouco mais livre, aprendemos a nos divertir com ela. Mas um dia fomos apresentados à música de concerto e mergulhamos nela, gostamos. Mesmo que ela carregue consigo algumas formalidades que já nos cansaram.

Encontramos na música de concerto algo que valorizamos muito, a escrita. Somos leitores, gostamos de ler palavras e também motivos musicais. Nos encanta a busca por eternidade de um compositor. Ele registra em papel uma grafia e espera que aquilo comunique uma ideia de som. Mas isso falha, porque quem lê está vivo e se coloca à interpretação. Jamais saberemos qual foi a ideia de uma composição em sua totalidade, mas sabemos o que ela nos provoca a imaginar, e assim ela revive em nós.

A partitura tenta, mas tem limites e a música não está nela. Davi Kopenawa, em seu livro A queda do céu, conta que a escrita nada mais é do que um repouso para as palavras. No papel as palavras estão deitadas, e quando alguém as lê elas se levantam. A tradição europeia de notação musical colocou muitas músicas para dormir em papel. Nós, músicos vivos no século XXI, precisamos acordá-las para que elas não sejam apenas coisas que ficam enquanto nós estamos indo. 

Obrigada por ser companhia em pensar, viver e musicar, Fê.

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