Voltando a funcionar feito escravo

Entendo as mágoas da Justiça do Trabalho, mas generalizações não devem convencer espíritos mais atentos

O Elevador de Serviço (eu, no caso) esteve de férias, e é com entusiasmo que volta a funcionar, subindo e descendo, como é conveniente à sua natureza, celebrando a coluna de número 33 aqui no Plural.

Não custa lembrar que esta coluna dedica-se a comentar sobre relações de trabalho, e tentar explicar, da maneira mais simples possível, alguns institutos e conceitos jurídicos básicos, além de contar algumas histórias e, ainda, expressar a opinião pessoal deste ascensorista que vos escreve.

Hoje vou tentar explicar a importância da Justiça do Trabalho e como é fácil cometer enganos a este respeito, e para tanto, tenho que começar mencionando alguns fatos.

Esta semana comemorou-se, em 28 janeiro, o Dia Nacional de Combate ao Trabalho Escravo, porque nessa data, em 2004, fiscais do trabalho foram assassinados em Minas Gerais.

No site Brasil de Fato, encontrei artigo de autoria de Marques Casara, intitulado “Em silêncio, 261 crianças morreram trabalhando no Brasil”. Nele, comenta que o Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil (FNPETI) compilou dados (informações do Sistema de Informação de Agravos de Notificação – SINAN), mostrando que 261 crianças e adolescentes morreram em decorrência do trabalho entre os anos de 2007 e 2018; e no mesmo período foram registrados 43.777 acidentes de trabalho com crianças e adolescentes entre 5 e 17 anos. Os números podem ser superiores, já que é comum ocorrer a subnotificação.

No site do TST encontra-se artigo com dados do Ministério Público do Trabalho de Mato Grosso do Sul, informando que a maioria dos casos de trabalhadores encontrados em condições análogas à de escravo ocorrem na pecuária e no cultivo do café (impossível não lembrar da velha política do café com leite).

Em 2018, conforme a Secretaria de Inspeção do Trabalho (SIT), em todo Brasil, foram encontrados 1.200 trabalhadores em condições análogas à de escravo no meio rural, e mais 500 no meio urbano.

Não impressionam esses fatos? Não parece uma barbárie gigantesca assassinarem fiscais do trabalho pelo simples fato de serem fiscais do trabalho? E o fato de ainda existir, em dias de hoje, aqui mesmo no Brasil, trabalho infantil, trabalho escravo e análogo à condição de escravo?

Caso você tenha curiosidade, procure o livro intitulado A Autobiografia do Poeta-Escravo, de Juan Francisco Manzano (organização, tradução e notas de Alex Castro, Ed Hedra, 2015, São Paulo-SP). Escrito em 1850 em Cuba, onde o autor era escravo, é um raro relato de sofrimentos. Bastante comovente.

Já nos processos trabalhistas, voltando à nossa atual realidade, os pedidos mais comuns do empregado são verbas básicas como rescisão, férias, décimo-terceiro salário e FGTS.

Como estou na área há mais de 25 anos, posso afirmar, sem medo de errar, que a grande maioria dos empregados que buscam a Justiça do Trabalho não são de malandros querendo tirar proveito; são empregados que deixaram de receber direitos básicos, que foram explorados e descartados.

Por outro lado, no site Metropoles, encontrei artigo de autoria de J. R. Guzzo, intitulado “Justiça do Trabalho é a maior responsável pelo desemprego no país”, onde afirma que as varas e os tribunais do trabalho abandonaram a apreciação objetiva e imparcial dos conflitos trabalhistas, passando a criar direitos para os trabalhadores e regras que punem as empresas.

Afirma haver uma hostilidade sistêmica contra os empregadores. Para sustentar seu ponto de vista, menciona uma decisão de um tribunal trabalhista (não cita a fonte), que proibiu uma empresa de demitir um usuário de drogas contumaz, obrigando a empresa a readmiti-lo e ainda pagar-lhe uma indenização por danos morais. 

Ora, como o artigo não cita a fonte, não informa o tribunal julgador nem o número do processo, impossível conferir, mas, de maneira geral, podemos supor que o julgado foi correto ou incorreto.

Pode ter sido correto dependendo dos elementos que permearam o caso concreto. Ou pode ter sido uma aberração, um julgamento que eu costumo chamar de teratológico (teratologia é a ciência que estuda as monstruosidades).

De qualquer forma, utilizar-se de um caso concreto para afirmar que a Justiça do Trabalho é a responsável pelo desemprego, é tomar o todo pela parte.

É tomar um caso teratológico para, com base nele, afirmar que toda a Justiça é, em essência, teratológica, desprezando, evidentemente, a esmagadora maioria dos casos.

Esse tipo de opinião encontra eco em quem, de alguma forma, é empregador ou já sofreu com algum processo trabalhista, e que costuma dizer algo como, “mas eu registrei em carteira e tudo, fiz tudo certo”.

Registrar em carteira e “fazer tudo certo”, ou seja, pagar o salário, férias, décimo terceiro, não é mais que a obrigação. É o mínimo que se espera de qualquer empregador. E não se iluda, muitos deles só fazem isso porque são obrigados, do contrário, não o fariam.

Aliás, não são poucos os casos onde se busca escapar dessas responsabilidades básicas, com as mais diversas atitudes, como suposto trabalho autônomo ou supostas terceirizações, por exemplo.

Guardadas as proporções pode-se comparar com aqueles casos em que o cliente se acha no direito de tratar mal o garçom porque “eu estou pagando”. É claro que está pagando, você queria o quê? Comer de graça? O fato de você estar pagando não é mais que sua obrigação.

Entendo que muita gente possa ter lá suas mágoas da Justiça do Trabalho, e que injustiças podem ocorrer (inclusive para os dois lados), mas uma generalização em forma de crítica, com fundamento espúrio e isolado, por certo não deve convencer um espírito mais atento. Pelo menos assim eu espero.

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