Quanto vale a sua intimidade?

Na coluna Elevador de Serviço, Vicente Moraes conta quanto a gigante BRF vai ter de pagar a uma funcionária por ter de ficar nua na frente de colegas

O músico e compositor Diego Perin lançou um single em 2017 onde diz que “via de regra, a dor dos outros não dói”;  um aforismo tristemente verdadeiro.

Na cidade de Rio Verde (GO), uma auxiliar de produção do setor de corte de aves da empresa BRF Brasil Foods S/A reclamou na Justiça do Trabalho o fato de que as cabines dos chuveiros não tinham porta, e assim, os empregados eram obrigados a tomar banho nus na frente dos demais colegas.

Penso que só isso já se constitui numa absoluta humilhação; não consigo me imaginar tomando banho nu na frente de colegas de trabalho, tenho certeza que morreria de vergonha. Mas isso só aconteceria se alguém conseguisse me obrigar com algum tipo de coação bastante contundente, caso contrário, não faria isso por dinheiro nenhum. Acredito que não sou o único a pensar assim.

Nada obstante, ao que parece, na Cidade de Rio Verde, a gigante do setor não acha que porta no chuveiro seja coisa importante, de maneira que o banho visível foi imposto como prática comum aos empregados. Ainda bem que pelo menos é separado por sexo – diga-se isso em favor da empresa, que também alegou, em sua defesa, a chamada “barreira sanitária”.

Trata-se de normas do Ministério da Agricultura para os frigoríficos, onde há um “setor sujo”, que é o de acesso dos empregados vindos da rua com roupas comuns, e o “setor limpo” onde há o contato com as aves, e onde é necessário trajes específicos, para evitar contaminações. Até aí tudo bem, mas a empregada tinha que passar do setor sujo para o setor limpo usando apenas as roupas íntimas, para lá vestir o uniforme e iniciar o trabalho.

Pois bem, o Juiz decidiu que houve ofensa moral e condenou a empresa a pagar indenização, por entender que “não existe nas normas a obrigação sanitária de permanência de trabalhadores desnudos dentro dos vestiários”.

Porém, a empresa recorreu da sentença, e o órgão de segunda instância, Tribunal Regional do Trabalho da 18ª Região (GO) mostrou-se menos sensível, e afastou a conduta culposa da empresa, revertendo a condenação. O argumento usado foi de que “a ausência de portas nos chuveiros não é indicativo de que a intenção da empresa fosse expor os empregados perante os colegas de trabalho”.

Bem, se não teve a intenção de expor, parece-me que também não teve a intenção de resguardar.

O caso foi parar no órgão de terceira instância, Tribunal Superior do Trabalho. A 4ª Turma, publicada em 8/2/2019, tendo como relator o Ministro Alexandre Luiz Ramos, decidiu que “a ausência de portas nos boxes dos chuveiros não está prevista nas normas de segurança e higiene editadas pelo Ministério da Agricultura e configura exposição excessiva e injustificada da intimidade do empregado”.

Assim, reformou a decisão do TRT e manteve a sentença de primeiro grau, ou seja, manteve a indenização, mas ainda cabe recurso.

O recurso da trabalhadora foi aceito pelo TST com base em afronta direta à Constituição, no seu artigo 5º inciso X que diz:

X – são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;  

A propósito, recomendo a leitura do art. 5º e seus incisos da chamada Constituição Cidadã, que começa com aquele negócio de “todos são iguais perante a lei”; mas fala também de igualdade entre homens e mulheres, proibição de tortura e de tratamento desumano ou degradante, livre manifestação de pensamento, de crença, e por aí vai.

Sim, isso tudo está na lei, pessoal, na Constituição Federal, e tem muito mais. Uma porção de coisas que tem gente esquecendo atualmente.

Assim, caso não haja mais recursos, e em sendo mantida a decisão do TST, a empregada receberá indenização no valor de, sabe quanto? R$ 3.388,00.

Não, você não leu errado; são três mil, trezentos e oitenta e oito reais. Só eu que acho aviltante?

É triste pensar que se fez justiça, mas nem tanto. Afinal, de que vale indenizar apenas um empregado e manter as coisas como estão para os demais? E isso é valor que vá preocupar a BRF ou realmente indenizar a trabalhadora? E será que é preciso incentivo para dar o mínimo de privacidade para um empregado? Afinal, não estamos na China, onde a noção de privacidade é bastante diferente; onde existem banheiros coletivos nas praças das pequenas vilas, cujas casas não possuem banheiro.

Se fosse nos Estados Unidos, que possui um sistema jurídico totalmente diferente, a reclamação dessa única empregada surtiria efeito automaticamente para todos os demais empregados que estivessem nas mesmas condições – e, acredite, a indenização não seria aviltante. Os americanos são bem mais pragmáticos.

Por aqui, na terra verde e amarela, resta lembrar que “a dor dos outros não dói”.

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