Empregados domésticos: até onde vai a nossa mentalidade escravagista?

Vicente Moraes fala sobre a lenta evolução dos direitos dos trabalhadores domésticos no Brasil

Desde a primeira coluna Elevador de Serviço, eu queria escrever a respeito de empregados domésticos, mas sempre acontecia alguma barbaridade que me obrigava a escrever sobre outro assunto mais pungente. Primeiro o alardeado fim da Justiça do Trabalho, depois as calamidades em Brumadinho; o assassinato pelo segurança do mercado; presidente postando pornografia, e por aí vai.

É chocante perceber que, desde 14/1/2019 (data de lançamento do Plural) até hoje, não passou uma semana sequer sem ocorrer alguma barbaridade. E os domésticos iam ficando para depois.

A impressão que fica é que isso sempre aconteceu com os domésticos: serem deixados para depois, por conta de assuntos mais importantes. Daí a lentidão da evolução das leis específicas.

Assim, preferi fechar os olhos para os acontecimentos desta última semana, para afinal poder falar um pouco sobre essa classe de trabalhadores, tão importantes e tão sofridos; muitas vezes humilhados, mas também muitas vezes amados – como se diz, “como se fossem da família”.

E nada mais adequado para a coluna Elevador de Serviço, do que falar sobre empregados domésticos, pois realmente acontecia, e talvez até hoje ocorra, essa indesculpável discriminação – fazer os empregados domésticos subirem pelo elevador de serviço.

A classe dos empregados domésticos não se resume a faxineiras, arrumadeiras ou cozinheiras, mas inclui também babá, jardineiro, mordomo, copeiro, motorista, o caseiro da casa de praia, o caseiro do sítio de lazer. Todos que prestam serviços à pessoa ou à família, no âmbito da residência, sem finalidade lucrativa (para o empregador).

E justamente a questão da finalidade do trabalho – dessa finalidade ser, ou não, o lucro – é que diferencia os empregados domésticos dos empregados celetistas. Num trabalhador de empresa, o empregador espera tirar dele a “mais valia”, ou seja, é necessário que aquilo que o empregado produz, renda mais, tenha mais valor, do que o salário que é pago para ele.

Já quanto ao empregado doméstico, não se espera tirar lucro da atividade dele, mas se espera apenas que seu trabalho supra algumas necessidades pessoais do patrão e da família.

Mas, na verdade, existe uma distinção mais sutil. Mais psicológica; mais camuflada. É que os empregados domésticos são, na maioria, mulheres (sujeitas a preconceito de gênero); não dão lucro (sujeitas, portanto, a certo desprezo); e realizam tarefas no âmbito da residência dos patrões, basicamente fazendo o serviço chato ou pesado que o patrão não quer, ou não pode fazer. Ou seja, dá toda a impressão de ser um verdadeiro resquício da escravidão.

E essa sensação é tão arraigada que até hoje muitos compartilham dela, mesmo sem perceber. E até hoje apartamentos com quarto de empregada estão aí para nos lembrar disso.

Pode-se notar como foi lenta e difícil a luta dessa classe para adquirir direitos trabalhistas.

Vou tentar ser breve no histórico pois, no afã de esgotar o assunto, a gente arrisca esgotar a paciência do leitor.

Do Império à República

A primeira norma trabalhista Brasileira aplicada aos empregados domésticos, foi promulgada em 13 de setembro de 1830, pelo então Imperador Constitucional D. Pedro I, e cuidava mais dos deveres do que propriamente dos direitos dos empregados. Nessa época já havia escravos libertos que, por não terem para onde ir, continuavam a trabalhar nas mesmas atividades, em troca de teto e comida.

Depois de 58 anos, em 13 de maio de 1888, a Lei Áurea abolia a escravatura. Na prática, por simplesmente não terem para onde ir, nem como sobreviver, nem terra para plantar, os escravos continuavam nas mesmas atividades, trabalhando em troca de teto e comida, ou pouco mais que isso.

Em 1916, com a promulgação do chamado Código Civil dos Estados Unidos do Brasil, pelo presidente Venceslau Brás, começou a se dar mais atenção às relações de trabalho. Era previsto que “Toda a espécie de serviço ou trabalho lícito, material ou imaterial, pode ser contratada mediante retribuição” (art.1.216).

Nessa época não se encarava a relação de trabalho propriamente como um vínculo de emprego, mas sim como “locação de serviços”. Tratavam-se os envolvidos como “Locador” (o que presta os serviços) e “Locatário” (o que toma os serviços), não como empregador e empregado.

Nasciam aí algumas noções básicas, que até hoje permanecem; de justa causa para o locador (empregado) dar por findo o contrato, tais como exigir serviços superiores às forças, proibidos por lei, contrários aos bons costumes, alheios ao contrato, etc. Pode-se dizer que seriam as primeiras regras protetivas dos empregados, também aplicáveis aos domésticos.

Somente em 1923, o presidente Arthur Bernardes aprova o Decreto 16.107/23, regulando a locação de serviços domésticos, com previsão de direitos e deveres do locador e do locatário, e também da justa causa que poderia ensejar a rescisão do contrato.

Na era Vargas, em 1941, o Decreto-Lei 3.078/41 definiu de maneira simples o conceito de empregados domésticos, qual seja:  “São considerados empregados domésticos todos aqueles que, de qualquer profissão ou mister, mediante remuneração, prestem serviços em residências particulares ou a benefício destas”.

Mas a própria CLT – Decreto-Lei n. 5.452 de 1943 – por mais ampla que tenha sido, abrangendo várias categorias profissionais, incrivelmente foi omissa em relação aos empregados domésticos. Eles continuavam regidos pelo Código Civil de 1916 e decretos posteriores.

Somente em 1972, com o então presidente Médici, um novo conceito de empregado doméstico foi instituído com a Lei 5.859/72, com regulamento aprovado no ano seguinte. Mas ainda eram tímidos os direitos dos domésticos, como férias de apenas 20 dias por ano, e sem limitação de horário de trabalho, ou seja, sem direito a receber horas extras.

A Constituição de 1988, chamada Constituição Cidadã, estendeu aos domésticos alguns direitos que já eram assegurados a outros trabalhadores, como salário-mínimo; irredutibilidade do salário; décimo terceiro salário; repouso semanal remunerado; férias anuais mais 1/3 do salário normal; licença maternidade por 120 dias; licença paternidade; aviso prévio e aposentadoria.

Século 21

No ano de 2001, no governo do presidente Fernando Henrique Cardoso, foi facultado aos empregados domésticos a possibilidade de aderirem ao sistema de Fundo de Garantia por Tempo de Serviço. Ainda não era obrigatório.

No governo do presidente Lula, em 2006, mais direitos foram agregados, como a vedação de descontos salariais por fornecimento de alimentação, vestuário, higiene e moradia (o desconto por moradia é permitido em casos específicos); além de férias de 30 dias acrescidas de 1/3 a mais de salário, e a estabilidade gestante.

E finalmente em 2013, com a chamada PEC das Domésticas – a Emenda Constitucional 72 – ficou estabelecida a igualdade de direitos trabalhistas entre os trabalhadores domésticos e os demais trabalhadores urbanos e rurais, atenuando os resíduos oriundos do período escravocrata, que ainda continuavam impregnados nas relações de trabalho.

Seguiu-se a Lei Complementar 150 de 2015, pela então Presidenta Dilma Rousseff. Entre outras coisas, a lei trouxe a inclusão obrigatória dos domésticos ao Seguro da Previdência Social e ao sistema de FGTS, e o direito ao pagamento de horas extras.

Concluindo: de 1830 até hoje, são quase duzentos anos para reconhecer direitos básicos de uma classe de trabalhadores.

Quase duzentos anos para conseguir colocar fim num pensamento escravagista. Mas será que realmente teve um fim? Será que realmente os direitos dos domésticos estão sendo respeitados, na prática?

E de se lembrar que ainda há o rescaldo dessa mentalidade, devidamente legalizado, que são as diaristas. A Lei Complementar 150, no mesmo artigo, tratou de garantir as domésticas e excepcionar as diaristas:

“Art. 1o  Ao empregado doméstico, assim considerado aquele que presta serviços de forma contínua, subordinada, onerosa e pessoal e de finalidade não lucrativa à pessoa ou à família, no âmbito residencial destas, por mais de 2 (dois) dias por semana, aplica-se o disposto nesta Lei”.

Então, ao que me parece, a ideia foi de acabar com esse negócio de doméstica sem direitos, mas nem tanto. Aquela diarista de apenas um ou dois dias por semana continua não sendo empregada. É uma trabalhadora, mas não é empregada. Não acha curioso?

https://www.plural.jor.br/elevador-de-servico-8-o-transgenero-no-trabalho/

 

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