Elevador de Serviço #01: O “fim” da Justiça do Trabalho

Em sua coluna de estreia, o advogado e escritor Vicente Moraes fala sobre como o "fim" da Justiça do Trabalho, anunciado pelo presidente Jair Bolsonaro, é inviável em uma sociedade capitalista.

“…eu vou subir / pelo elevador dos fundos / que carrega o mundo / sem sequer sentir…”

(Raul Seixas)

Com um misto de entusiasmo e receio, aceitei o desafio de fazer esta coluna, onde pretendo abordar assuntos e contar histórias a respeito de relações de trabalho, de forma simples, evitando o juridiquês tanto quanto possível.

Pretendo contar algumas histórias que amealhei durante os quase quarenta anos da minha vida profissional e abordar assuntos a respeito das relações de trabalho, tanto pelo aspecto jurídico quanto pelo aspecto social, para tentar esclarecer alguns assuntos que à primeira vista parecem complicados.

            Chamei de elevador de serviço porque é, em última análise, o que sou e o que somos todos nós, que lutamos para sustentar nossas famílias. Aqueles que “carregam o mundo sem sequer sentir”, aqueles que “carregam o piano”, aqueles trabalhadores de todas as áreas e profissões, que diariamente dão seu suor, seu tempo, sua vida para manter girando esta imensa máquina produtiva em que estamos inseridos, e enquanto isso, tentam sobreviver.

            E vou começar pelo fim, o alardeado “fim da Justiça do Trabalho”.

O Fim da Justiça do Trabalho

            Logo que tomou posse, o novo Presidente da República editou uma medida provisória onde desapareceu com o Ministério do Trabalho, em seguida deu uma entrevista dizendo que a Justiça do Trabalho deveria acabar.

De imediato já arrisco dizer que não acredito que nenhuma das coisas vá se concretizar: Já pipocam ações que contestam a extinção do Ministério do Trabalho, que teria sido um ato inconstitucional, e assim o Supremo Tribunal Federal acabará decidindo a questão, se o próprio Governo não voltar atrás (não seria a primeira vez).

É correto, é viável e é possível acabar com a Justiça do Trabalho? A declaração do presidente tem consistência? Infelizmente trata-se de uma tolice, por qualquer ponto de vista que se analise.

Sugerir o fim da Justiça do Trabalho foi uma declaração totalmente desprovida de qualquer embasamento jurídico, e não precedida de qualquer estudo técnico de viabilidade, conveniência ou eficiência. Acabou pegando mal até para a imagem do Brasil no exterior, já que as empresas sérias, inclusive multinacionais, têm interesse no “selo da sustentabilidade e da dignidade do trabalho”.

Uma situação de instabilidade econômica numa sociedade capitalista só tende a piorar sem um mediador especializado nas relações de trabalho.

A Organização Internacional do Trabalho usa o termo “trabalho decente” para designar uma “política institucional que procura impulsionar a atenção mundial em torno de quatro pilares laborais: os direitos fundamentais (trabalho com liberdade, igualdade e não forçado ou infantil), o emprego como fator de desenvolvimento para todos, proteção social (redes de amparo em situações de vulnerabilidade) e o diálogo social (busca de consenso entre governo e organizações de trabalhadores e de empregadores sobre condições justas e dignas de trabalho e o emprego)”.

As leis trabalhistas são inerentes a uma sociedade capitalista, tanto quanto os bancos (instituições financeiras). Ou seja, é simplesmente impossível imaginar a existência de uma sociedade capitalista organizada onde não exista direito do trabalho.

Ao mesmo tempo, uma situação de instabilidade econômica numa sociedade capitalista só tende a piorar sem um mediador especializado nas relações de trabalho.

Quando o trabalhador escuta que vai acabar a justiça trabalhista, logo pensa: mas se eu não receber salário, férias, 13º, não poderei reclamar com ninguém? (aliás, 61% das ações trabalhistas dizem respeito a verbas rescisórias).

Não é bem isso. O que sugeriu o presidente foi eliminar o aparato judiciário: A Justiça do Trabalho é uma Justiça Federal, e a idéia do presidente foi de transferir os processos para a Justiça Estadual que é a chamada Justiça Comum, ou, incorporar à própria Justiça Federal.

Manifestação: A OAB-PR e mais 6 entidades promoverão ato público em defesa da Justiça do Trabalho em face da declaração do Presidente da República sobre a possibilidade da sua extinção.Dia: 21/01/2019, às 13h. Local: Átrio do Fórum da Justiça do Trabalho de 1o grau de Curitiba (Rua Vicente Machado, 400).

Mas isso seria uma coisa tão complicada, que se tornaria inviável, tanto operacional quanto economicamente – além de ser inconstitucional, já que a competência de cada justiça para julgar tal ou qual matéria é definida pela Constituição Federal. Ou seja, necessitaria uma baita emenda constitucional, a ser aprovada pelo Senado, para implementar qualquer dessas coisas.

Além do fato do Brasil ser signatário da Carta Internacional Americana de Garantias Sociais, formulada pela Organização dos Estados Americanos, que prevê a obrigação de ter juízes especializados nas questões trabalhistas. Teria que mudar isso daí…

O presidente acrescentou, ainda, duas justificativas: de que o empregado é protegido demais, e que não existe Justiça do Trabalho em outros países.

A segunda afirmação é totalmente falsa, já que as leis trabalhistas brasileiras são muito parecidas com diversos outros países da América Latina e da Europa, além de EUA. Sim, acreditem, nos Estados Unidos existem leis trabalhistas e judiciário especializado, e aliás, os direitos lá são assemelhados aos nossos: jornada de trabalho, intervalos, trabalho insalubre ou perigoso, essas coisas básicas (e lá cada estado tem suas leis trabalhistas, o que deixa tudo ainda mais complexo).

Fico realmente pasmo ao saber que há quem defenda simplesmente o fim das leis trabalhistas (inclusive um professor de renomada instituição de ensino), dizendo que é um mal para a sociedade, e que representa uma dialética marxista de capital versus trabalho já ultrapassada.

É de se perguntar: por que tem que existir leis trabalhistas e justiça do trabalho? Não era só deixar que as pessoas contratassem entre si o trabalho?

Essa afirmação, ao meu ver, é de grande ingenuidade, para dizer o  mínimo, é o mesmo que dizer: por quê precisa de um código penal?, é só deixar que cada um decida qual vai ser a pena do outro que lhe prejudicou.

Ou então, para que leis comerciais? E leis aduaneiras, pra quê? E para que um Código do Consumidor? Não é só deixar que as pessoas contratem entre elas?

Deixar que patrões e empregados negociem livremente (ou fornecedores e consumidores) é o mesmo que colocar uma galinha e uma raposa fechadas no galinheiro para negociarem: adivinhe quem vai sair depenado?

Na época em que apareceu a Justiça do Trabalho, os trabalhadores eram explorados demais, com jornadas exaustivas, inclusive mulheres e crianças em condições degradantes e em trabalhos insalubres. Naquela época o patrão dizia: “Não gostou vá embora que está cheio de gente querendo trabalhar”.

Você acha que atualmente, se houvesse contrato de trabalho direto entre as partes, isso realmente seria melhor para todos? Você realmente acha que não haveria abusos, que um contrato assim seria “justo” ? Será que não haveriam cláusulas leoninas (abusivas) nesse contrato? É justo e/ou justificável aproveitar-se da situação de vulnerabilidade de alguém para lhe impor um contrato extremamente desfavorável? A possibilidade de geração de empregos, que no caso seriam precários, é suficiente para justificar tal atitude? E quem julgaria se tais cláusulas são ou não abusivas?

Logo alguém vai resolver que “aqui não tem essa de hora extra nem de décimo terceiro ou férias, se quiser aceitar assim, tudo bem, senão você é livre para ir embora”.

Leia também: “Sabe tudo que te disseram sobre a Justiça do Trabalho? Pense de novo”

Não se iluda: sem a Justiça do Trabalho, a conseqüência imediata seria a supressão de direitos trabalhistas básicos, sempre ao argumento de que “é melhor assim do que não ter nenhum emprego e nenhuma iniciativa empresarial”. É como estar precisando de antibióticos e receber aspirinas.

Talvez a eficiência da Justiça do Trabalho é que esteja incomodando, e dá a impressão que o nosso presidente quer arranjar uma maneira dela funcionar pior (aliás, o que já foi a evidente intenção da Reforma Trabalhista, mas isto fica para outro dia).

Lastimáveis e equivocadas, em todos os sentidos, as declarações presidenciais. Eu imagino que milhões de empregados votaram nele, será que agora não se sentem traídos? Será que ele seria eleito se fizesse esta declaração antes? 

Ainda outros argumentos costumam ser enfileirados, por exemplo, que a Justiça do Trabalho utiliza-se de critérios subjetivos. Ora, a diversidade de interpretações na Justiça do Trabalho é similar a de outros ramos do Judiciário.

Aliás, a subjetividade é inerente ao próprio Direito. Quer coisa mais subjetiva do que o conceito de “justiça”?

Por exemplo: em outras épocas, quando não se falava em crimes contra a humanidade, um líder que protegesse seu povo contra os inimigos e alargasse suas fronteiras seria considerado um herói. Hoje poderia ser considerado inescrupuloso ou até um genocida.

E, por fim, é de salientar-se que a “justiça” não está na igualdade de tratamentos. Vale a máxima: Não existe nada mais injusto do que tratar igualmente os desiguais.

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