Sem monitoramento, agricultura e empreendimentos avançam sobre vegetação nativa da Escarpa Devoniana

Um dos maiores patrimônios naturais e históricos do Paraná é ameaçado pelos interesses de ruralistas, imobiliárias, construtoras e mineradoras, segundo pesquisadores

Uma das maiores e mais peculiares biodiversidades do planeta, a Escarpa Devoniana, continua ameaçada por interesses econômicos. Localizada entre o primeiro e segundo planalto paranaense, região que separa Curitiba do interior do estado, a área carece de um sistema de vigilância e monitoramento eficaz. Por este motivo, a Área de Proteção Ambiental (APA) que reúne 4 parques estaduais e o Parque Nacional dos Campos Gerais vem sofrendo uma redução significativa no que restou dos menos de 15% da sua vegetação nativa.

A mobilização da sociedade paranaense em torno da preservação da escarpa conseguiu o arquivamento do projeto de lei 527 de 2016 dos deputados estaduais Plauto Miró (DEM) e Ademar Traiano (PSDB), que “prometiam” a preservação da área. O texto previa a redução em 70% dos limites da APA da Escarpa Devoniana. Sem os holofotes apontados para o problema ambiental de um polêmico projeto de lei, a Escarpa Devoniana padece pela ação silenciosa de alguns grupos. Construções de condomínios e hidrelétricas, ampliação de áreas de pasto e agricultura, substituição da mata nativa por florestas exóticas e mineração estão entre as principais ameaças.

Desde a criação da APA, em 1992, a área que se estende da Lapa, próximo a Santa Catarina, passando por Ponta Grossa e Campo Largo, até Sengés, na divisa com São Paulo, perdeu muito da sua vegetação nativa. Em 2017, pesquisadores do Laboratório de Mecanização Agrícola da Universidade Estadual de Ponta Grossa, apontaram um aumento de 67% de terras destinadas à agricultura, florestas exóticas e urbanização na área.

Nos últimos anos denúncias e intervenções de órgãos públicos e da sociedade civil apontam uma ação frequente que coloca em risco não só a vegetação, mas também a vida animal que depende do bioma e os registros históricos. Dentre os principais responsáveis, estão os donos de fazendas e propriedades rurais.

Em artigo publicado em 1993, os pesquisadores Almir Pontes Filho, Carlos Hugo Rocha e Hideo Araki analisaram imagens de satélite e verificaram naquele período um processo de degradação de áreas da escarpa como resultado do avanço da agricultura e pastagens. “Estas atividades provocaram significativas alterações nas características da paisagem primitiva, resultando em processos erosivos, assoreamento de canais de drenagem e contaminação por agrotóxicos, infestação de pastagens, etc.”, diz um trecho do texto.

Em uma pesquisa mais recente e que também analisa imagens de satélite, Tieme Breternitz Harfouch, Ana Paula Dalla Corte, Marieli Sabrina Ruza, Franciel Eduardo Rex apontam uma redução da vegetação da APA, principalmente do entorno. Segundo artigo publicado na revista Enciclopédia Biosfera, em 2019, “entre 1986 e 2006 houve redução no interior da APA de 12% das áreas compostas por vegetação natural. Já as classes de plantio florestal, agricultura e solo exposto aumentaram em 2%, 5% e 7%, respectivamente”.

Dados controversos

A Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) recentemente publicou uma análise que indica um pequeno crescimento da vegetação nativa entre 2008 e 2017. Os dados estão baseados em imagens de satélite e geoprocessamento e o levantamento foi realizado a pedido da Federação da Agricultura do Estado do Paraná (FAEP). A mesma federação, que representa ruralistas, também havia recomendado uma pesquisa com resultados similares produzida pela Fundação ABC.

A Fundação ABC se identifica como “uma instituição de caráter particular, sem fins lucrativos, que realiza pesquisa aplicada para desenvolver e adaptar novas tecnologias, com o objetivo de promover soluções tecnológicas para o agronegócio aos mais de 5 mil produtores rurais filiados das Cooperativas Frísia, Castrolanda e Capal”. 

Estas cooperativas reúnem produtores da região do entorno da Escarpa Devoniana e são apontadas como as principais lobistas no projeto de lei que previa a redução da área de proteção ambiental.

Pesquisadores do Grupo Universitário de Pesquisas Espeleológicas (Gupe), ong ligada à proteção ambiental que reúne professores, pesquisadores e ativistas, questionam as informações publicadas pela Embrapa e pela Fundação ABC. O geógrafo e professor do departamento de Geociências da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG), Henrique Simão Pontes, diz que as análises estão incorretas. “O problema é a utilização de imagem de satélite e que apresentam baixa resolução. Um pixel equivale a 30 metros quadrados, perde-se muita resolução e detalhamento. Fica difícil diferenciar as gramíneas que são nativas ou usadas para pasto”, diz. Além disso, segundo ele, “a luz solar e a sombra pode alterar a percepção sobre a imagem. A pesquisa da Embrapa diz que a taxa de erro estava próxima de 25%. As chances de equívoco são muito altas. Uma amostragem confiável deve ter (taxa de erro) perto de 5%”.

Outro problema que induz a interpretações equivocadas é a presença de árvores exóticas na região. Segundo Pontes, o impasse iniciou no governo Beto Richa, com a aprovação do Código Florestal Estadual, em 2015. Pela nova legislação, passou-se a considerar árvores como pinus e eucalipto como reserva legal.

O Gupe, a exemplo de outras organizações, tem denunciado a substituição da vegetação nativa por espécies exóticas como o pinus. Trata-se de um tipo de pinheiro utilizado principalmente pela indústria de papel que é muito evasivo, de rápida dispersão e de difícil controle. A substituição da floresta de araucária gera um grande impacto ambiental, tendo em vista que outras espécies vegetais e animais existentes sobrevivem em um ecossistema já estabelecido.

Em artigo publicado em 2018, na revista Terr@Plural, Pontes, Laís Luana Massuqueto, Gilson Burigo Guimarães e Carlos Hugo Rocha apontam uma redução drástica da mata nativa. Segundo o texto, entre 2002 e 2017, “foram identificados mais de 1.000 pontos com possíveis ocorrências de crimes ambientais dentro da APA”. Os dados foram obtidos a partir de imagens do Google Earth. “São milhares de hectares de campos nativos destruídos pelo avanço irregular da agricultura e do plantio comercial de espécies de árvores exóticas na APA. Também mais de centenas de quilômetros de drenos instalados em campos úmidos, além de diversas Áreas de Preservação Permanente (APP) de nascentes, campos brejosos e cursos hídricos que foram suprimidas em desrespeito ao Código Florestal Brasileiro nos últimos 25 anos”, citam os pesquisadores.

Outro problema é que o monitoramento local realizado pela Embrapa parte de dados do Cadastro Ambiental Rural. Estes dados são autodeclarados por proprietários e ficam sujeitos a uma conferência eventual do terreno pelo Instituto Água e Terra (IAT). Ou seja, é provável que muitas áreas consideradas como intocadas estejam, na verdade, sendo usadas para plantio ou criação de animais, sobretudo porque há cultivo de soja e criação de animais no entorno da APA.

Foto: Alessandro G. C. Silva.

Chácaras no lugar de floresta

No final do ano passado, o Ministério Público do Paraná (MPPR) realizou uma operação que resultou em 13 autuações, num montante de quase R$ 550 mil em multas. Os responsáveis pelos crimes estavam parcelando ilegalmente o solo para uso urbano. Estão na lista de irregularidades “danos em áreas de preservação permanente, supressões de vegetação remanescente do bioma Mata Atlântica e execuções de obras e serviços potencialmente poluidores sem a devida licença ambiental”.

Sem dados mais precisos e sem estudos adequados, os empreendimentos imobiliários como condomínios de chácaras também seguem avançando. As áreas de floresta estão sendo substituídas por infraestrutura urbana, com rede de água e esgoto, luz e asfalto. São grandes terrenos ou mansões localizadas próximo do paredão da escarpa. É possível encontrar anúncios em Balsa Nova e São Luis do Purunã onde são exibidas fotos de pastagens de quase 300 mil metros quadrados com valores próximos a R$ 4 milhões.

“A área proporciona cerca de 36.000m2 de área junto a encosta, onde será, seguramente, sua casa de campo com vista, mais 235.000m2 de área passível de subdivisão para revenda de chácaras de 20.000m2 ou para agricultura”, diz um anúncio.

Toneladas de areia

Em uma reportagem publicada pelo Plural em 2019 e produzida pelo Livre,jor, a ação de mineradoras na região também vem sendo apontada como uma ameaça constante. O solo é rico em areia e arenito e outros minerais, incluindo ouro. Segundo a reportagem, são 37,5 milhões de toneladas de areia e minerais economicamente aproveitável e que chama atenção da indústria de cimento e cerâmica, principalmente. A ação das mineradoras provoca erosão e coloca em risco potenciais sítios arqueológicos que poderiam revelar aspectos importantes da vida terrestre e marítima de outros tempos.

Progresso?

Em março do ano passado a justiça acatou a denúncia do MPPR e do Ministério Público Federal (MPF) para interromper obras para instalação de linhas de transmissão na região por parte da empresa francesa Engie. Além das derrubadas de araucárias, considerada parte da vegetação nativa, as obras iniciadas em 2019 colocavam em risco parte das mais de 200 cavernas existentes na escarpa.

Em 2018, em outra denúncia do MPPR, o Tribunal de Justiça do Paraná determinou a paralisação das obras de usina hidrelétrica no município de Tibagi. A decisão suspendeu, inclusive, os licenciamentos ambientais concedidos pelo Instituto Ambiental do Paraná (IAP). Dentre os problemas, estavam a “falta de estudo de impacto de vizinhança e a ausência de análise fundamentada”, o que colocava em risco áreas do Parque Ambiental do Guartelá.

A ausência de monitoramento e fiscalização constante na região impede que se conheça exatamente as condições da escarpa. As informações mais precisas são providenciadas por pesquisadores que mapeiam regiões específicas e que se aventuram em trabalho de campo, observando e cobrindo in loco pequenas porções do terreno.

A falta de tecnologia, pessoal e investimento para a realização da tarefa deixa livre o caminho de grupos com força econômica interessados na redução da área de preservação da Escarpa Devoniana.

Os grupos mais interessados no futuro da Escarpa Devoniana estão de olho agora na revisão do Plano de Manejo contratado pelo Governo Estadual, conforme concorrência pública promovida no final do ano passado. Segundo divulgado pela Agência Estadual de Notícias, o estudo promete “reunir um conjunto de atividades visando cumprir seu objetivo de proteção aos importantes ecossistemas que as áreas abrigam. É ele que define quais atividades podem ser realizadas no local, como pesquisas científicas e turismo, por exemplo, de forma que a preservação seja garantida”.

Área turística

A Escarpa Devoniana compõe um cenário típico de estepes, araucárias, arroios, canyons, grutas e formações rochosas criadas há 400 milhões de anos. A área também conta com registros arqueológicos dos primeiros humanos que habitaram a região. Segundo o relatório do plano de manejo do IAT, os desenhos nas paredes de encostas e cavernas foram feitos por grupos indígenas. “Os principais registros datam das primeiras décadas do século XVII e estão relacionados à escravização de indígenas e a busca de metais preciosos”. Fósseis animais e vegetais também são registrados em sítios arqueológicos relevantes sobre o período devoniano e posterior.

O cartão postal mais famoso da Escarpa Devoniana é o parque de Vila Velha, composta pela Cidade de Pedra, esculpida pelo tempo, cuja Taça é a estrutura mais conhecida, além das Furnas e Lagoa Dourada. Mas a região conta com uma série de outros atrativos turísticos, como o Parque do Monge (Lapa), Parque do Cerrado (Jaguariaíva), Parque do Guartelá (Tibagi), Buraco do Padre (Ponta Grossa), além de cachoeiras e uma série de outras belezas naturais.

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