Pedagogia do Oprimido não é atual

O livro mais conhecido de Paulo Freire, que completaria 100 anos esta semana, precisa ser compreendido para além do sentido político-partidário

Paulo Freire foi bastante lembrado esta semana, quando completaria 100 anos. Mas esta não é uma novidade. As referências ao seu nome sempre estiveram em alta. Distante da unanimidade, ele é lembrado por professores, pesquisadores, políticos e jornalistas. Ora com comentários positivos, ora negativos.

As críticas sempre fizeram parte do trabalho dele, a ponto de render-lhe a prisão e exílio do país durante a ditadura militar. Mas o fato de ainda hoje ser tão citado no Brasil, e também internacionalmente, demonstra o poder de influência que este pequeno pernambucano exerce. Ele é, sem dúvida, um dos brasileiros mais influentes no mundo.

Neste artigo, não vou retomar a história de Paulo Freire, não falarei dos seus títulos e da sua trajetória. Também não pretendo fazer uma defesa da sua obra, para decepção de alguns colegas. O objetivo é fazer uma análise da contribuição e das limitações do seu livro mais célebre, Pedagogia do Oprimido.

Me senti provocado em propor este debate diante dos frequentes artigos publicados na Gazeta do Povo e que tendem a demonizar a figura de Paulo Freire. Algumas das críticas nem valem a pena ser mencionadas porque não passam de grosserias que em nada contribuem para o debate. Outras são reproduções de discursos de pessoas que nunca leram um livro de Paulo Freire. Mas há também os que trazem, ao menos, um raciocínio lógico estruturado que propõe uma crítica fundamentada sobre o trabalho de Freire e que, a meu ver, estão baseadas, na melhor das hipóteses, em interpretações equivocadas.

O levante anti-Freire ganhou força com movimento como o Escola Sem Partido e livros como Descontruindo Paulo Freire. Os mais críticos elegeram-no como responsável pela esquerdização do ensino no Brasil e pela decadência da educação brasileira.

Paulo Freire é acusado de marxista, comunista, doutrinador entre outros termos que depreciam a obra do brasileiro. O levante anti-Freire ganhou força com movimentos como o Escola Sem Partido e livros como Descontruindo Paulo Freire. Os mais críticos elegeram-no como responsável pela esquerdização do ensino no Brasil e pela decadência da educação brasileira.

Em Pedagogia do Oprimido, lançado em 1968, ele defende uma prática pedagógica voltada a um segmento da sociedade, a dos oprimidos. Nas palavras do autor, “aquela que tem de ser forjada com ele e não para ele, enquanto homens ou povos, na luta incessante de recuperação de sua humanidade. Pedagogia que faça da opressão e de suas causas objeto da reflexão dos oprimidos, de que resultará o seu engajamento necessário na luta por sua libertação, em que esta pedagogia se fará e refará”.

O sentido de engajamento de classe é bastante evidente no que se apresenta inicialmente. Mas este aparelhamento ativista, que é recorrente, sobretudo nas ciências humanas e sociais, precisa ser contextualizado e relativizado.

Quem leu o livro sabe que a primeira parte é marcada pela articulação entre educação e política. O sentido de engajamento de classe é bastante evidente no que se apresenta inicialmente. Mas este aparelhamento ativista, que é recorrente, sobretudo nas ciências humanas e sociais, precisa ser contextualizado e relativizado.

Quando escreveu Pedagogia do Oprimido, Paulo Freire vivia a ditadura militar, havia sido exilado do país e conheceu a pobreza e o analfabetismo de perto. Influenciado pela Teologia da Libertação, um movimento católico de esquerda, por extremismos típicos do auge da Guerra Fria, e pelas condições de miséria que vivenciou, Pedagogia do Oprimido é, em parte, uma afronta aos opressores.

Mas a questão central que geralmente é “esquecida” pelos críticos é que o livro vai além da politização da educação. Nesse sentido, há duas questões presentes no livro que precisam ser reconhecidas pela originalidade e pela capacidade propositiva. A primeira é a crítica à educação tradicional, ou o que ele nomeia como “educação bancária”. Até então, as escolas eram espaços autoritários, nos quais eram comuns as práticas de castigos corporais a alunos. Inspirado pela crítica marxista, Paulo Freire denunciou a ineficácia do ensino nesses moldes, estendendo a crítica ao capitalismo, o que é um equívoco. Como expressa a letra de “Another Brick in the Wall”, do Pink Floyd, de 1979, o ensino carecia de uma reforma mundial.

O segundo aspecto original está na solução que ele apresenta e que se constitui como uma metodologia de ensino. Segundo suas próprias palavras, a “educação autêntica” seria aquela em que “o educador já não é o que apenas educa, mas o que, enquanto educa, é educado, em diálogo com o educando que, ao ser educado, também educa. Ambos, assim, se tornam sujeitos do processo em que crescem juntos e em que os ‘argumentos de autoridade’ já, não valem. Em que, para ser-se, funcionalmente, autoridade, se necessita de estar sendo com as liberdades e não contra elas”. Ou seja, a de que o processo de ensino que se dispõe ao diálogo e ao reconhecimento dos saberes dos alunos é mais eficaz.

Em geral, as críticas tendem a simplificar a proposta de Paulo Freire para desqualificá-la. A doutora em pedagogia e professora da PUCPR, coordenadora de uma rede de pesquisa internacional sobre Paulo Freire e uma de suas últimas orientandas, Marilda Aparecida Bahrens, elabora a seguinte resposta: “Eu fui aluna dele. Nunca fiz nenhuma disciplina do mestrado ou doutorado que não tinha uma proposta. Uma proposta discutida, uma proposta dialogada, uma proposta muitas vezes reformulada. Isso é o espaço dialógico”.

O bem-sucedido método de alfabetização freireano, aplicado em Angicos, em 1963, a crítica ao ensino tradicional e a proposta de horizontalização da relação entre educadores e educandos são objeto de estudo e método de ensino em diferentes países. É o que abriu uma nova perspectiva para a educação que inspirou mudanças nas práticas pedagógicas em todo o mundo. Nas palavras de Moacir Gadotti, fundador do Instituto Paulo Freire e um dos principais conhecedores do pedagogo, com “as suas contribuições pedagógicas, ele constitui um marco decisivo na história do pensamento pedagógico mundial.”

Esta não é uma obra atual, porque o contexto educacional agora é outro, modificado, inclusive, pelo próprio pensamento de Freire.

Mas esse mérito não pode deixar que se perceba as limitações de Pedagogia do Oprimido. Primeiro, esta não é uma obra atual, porque o contexto educacional agora é outro, modificado, inclusive, pelo próprio pensamento de Freire. Está em falas como “o professor também aprende com o aluno”, “é preciso estabelecer um diálogo com o aluno”, “é preciso conhecer a realidade dos estudantes para reorganizar a maneira de ensinar”, “as dificuldades de aprendizagem de um aluno estão associadas a aspectos além da sala de aula”. Frases que podem ser ouvidas em qualquer instituição de ensino. Isso não é fruto de uma ação política governamental para promover um pensamento de esquerda, mas está enraizado nas práticas pedagógicas como aquilo que é o correto a ser feito, aquilo que pode ajudar o aluno a aprender.

Segundo, ao contrário do que tendem a dizer os críticos de Freire, a obra não é uma construção teórica para a pedagogia, mas um método de ensino. Freire não tinha pretensão de ser um teórico. Ele próprio se denominava como educador. Mesmo depois, em seu último livro Pedagogia da Autonomia, quando se pode verificar um aprimoramento da sua capacidade de escrita, ele não se colocou como teórico. Pedagogia da Autonomia é mais uma obra sobre o dever profissional dos professores, sobre a ético da profissão, do que uma discussão teórica.

Terceiro, a proposta de Paulo Freire não era inicialmente voltada para a educação em todos os níveis, mas para o que se chama de andragogia, ou o ensino de adultos. Os princípios que ele define em Pedagogia do Oprimido, a partir de conceitos como “termos geradores”, “relação dialógica”, “situação limite”, “educação problematizadora”, “síntese cultural”, entre outros, foram pensados a partir do problema do analfabetismo da população adulta e, depois, foram ampliados para a educação em outros níveis.

Por fim, ao reconhecer estas limitações, a atribuição a Paulo Freire como o grande mentor do ensino doutrinador marxista é uma invenção. Ainda que existam os que se apropriam do aspecto político-ideológico de Pedagogia do Oprimido para justificar uma ação militante em sala de aula, faltam elementos para se afirmar que os professores sejam, de fato, doutrinadores. Ainda assim, não seria de se estranhar o posicionamento crítico destes profissionais, tendo em vista os baixos salários, as condições adversas e a sobrecarga de trabalho. Isso, no entanto, não faz dos professores militantes de esquerda e nem do cristão Paulo Freire o difusor do marxismo em sala de aula.

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