Sensação da Netflix, o filme Não olhe para cima, lançado no último dia 24, caiu nas graças dos brasileiros mais críticos ao governo Bolsonaro e aos movimentos negacionistas. O sucesso do filme, que lidera o ranking do serviço de streaming no Brasil, tem a ver com as várias semelhanças com nossa realidade, lembrada em redes sociais e nos artigos publicados em diversos jornais sobre o filme.
Mas há um aspecto que me parece mais importante a respeito do sucesso da produção. Me refiro à acessibilidade proposta pelo diretor Adam Mckay. O filme é fácil de ser compreendido, as caricaturas de personagens a pessoas reais e a construção de estereótipos é muito clara. Ou seja, não é um filme que exige um alto grau cultural. Além disso, é repleto de cenas hilárias, sátiras, grandes atores hollywoodianos e ótimos efeitos especiais.
É um filme que propõe o rompimento de algumas barreiras que se solidificaram nos últimos anos e que têm impedido o estabelecimento do diálogo entre grupos com posições distintas. É uma louvável tentativa de furar a “bolha” que aprofundou o fenômeno que vem sendo chamado como “pós-verdade”. O termo, segundo o dicionário Oxford, quer dizer “que fatos objetivos têm menos influência para definir a opinião pública do que o apelo à emoção ou às crenças pessoais”.
É como se todas as concepções ou aquilo que as pessoas entendem como verdade fosse determinado exclusivamente por aspectos emocionais e não racionais. A verdade, assim, estaria condicionada a percepções pessoais, tornando-se mais fragmentada, subjetiva e personalizável. É o que explica, segundo Silvânia Siebert e Israel Vieira Pereira, em artigo publicado em 2020, na revista Linguagem em (Dis)curso, os fatores que promovem a ascensão de teorias conspiratórias e o negacionismo.
Em países onde se verifica o uso intenso de redes sociais para consumo de informação, como é o caso do Brasil, estes fenômenos tendem a ser mais fortes. O maior uso torna as redes espaços mais disputados por atenção. Ao mesmo tempo, aumenta também a exposição do público a conteúdos que não estão filtrados minimamente por algum trabalho profissional, como dos jornalistas, para não falarmos da propagação de informações falsas, também chamadas popularmente de fake news.
O filme também expõe fragilidades sociais como as tentativas de descredibilização da mulher, os riscos da privatização das decisões governamentais, o carreirismo na política, a apatia a problemas sociais, entre tantos outros aspectos que poderiam ser citados.
Ao retratar a ciência, por meio das personagens de Leonardo DiCaprio e Jennifer Lawrence, são evidenciadas também as fragilidades deste meio como a vaidade, o status diferenciado entre instituições de pesquisa e o descolamento em relação à realidade. Ao mesmo tempo, a ciência é também valorizada pelo filme, como demonstrado na fala final do Dr. Mindy, representado por DiCaprio: “O ponto é que nós realmente (ele pausa), nós realmente tínhamos tudo, não é mesmo? Quero dizer, quando você pensa sobre isso.” Ou seja, a ciência havia comprovado o fato, mas a maioria das pessoas não acreditou.
Retratada de forma generalizada, por meio de um programa de variedade de televisão e um grande jornal do país, a imprensa é apresentada como aquela que faz coro com as redes sociais. As personagens do programa e do único jornal que se interessou pelo caso, são retratados como figuras que pouco crédito deram aos cientistas e que estavam mais preocupadas com a audiência do que com o problema. Assim, teriam também sua parcela de culpa na catástrofe.
Nesse sentido, Não olhe para cima é também uma importante ilustração do que não se deve fazer no jornalismo.
Em uma das cenas, uma analista de métricas apresenta os dados da repercussão em redes sociais comparando a participação de uma pop star, vivida pela cantora Ariana Grande, e a participação dos cientistas no mesmo programa matinal. Os dados apontavam uma movimentação muito maior do público em relação à cantora e seu relacionamento amoroso do que aos cientistas, que, aliás, foram ridicularizados.
A crítica é contundente e faz sentido em boa parte, mas esconde também a diversidade de casos e as relações de proximidade e legitimação entre jornalismo e ciência. Evidentemente, como todo filme de ficção, é preciso considerar a licença poética marcada pelo exagero e generalismo em relação à realidade. Mas nem toda imprensa age assim e temos exemplos no Brasil que provam o contrário. Em muitos casos, o jornalismo se impõe como uma das poucas instituições a intervir no espaço público impondo limites ao negacionismo, salvo exceções, é claro.
Sobre o/a autor/a
Guilherme Carvalho
É doutor e mestre em Sociologia, com pós-doutorado em Jornalismo. Graduado em Jornalismo desde 2001. É professor de graduação da Uninter e do mestrado em Jornalismo da UEPG. Também é diretor científico da Associação Brasileira de Ensino de Jornalismo (Abej). Tem vários livros publicados, entre eles “Mídia, opinião pública e sociedade: desafios para uma comunicação em transformação” (Intersaberes, 2021) e “O espaço da mídia pública no Brasil” (Appris, 2017).