Metaverso deve ser motivo de preocupação e não de comemoração

Aposta das big techs para o futuro promete revolucionar a humanidade, mas pode aprofundar problemas reais decorrentes do uso de tecnologias digitais

As notícias de que o Facebook está investindo em uma nova tecnologia que promete revolucionar a internet foram recebidas com entusiasmo pela maior parte dos analistas e aficionados pelo ambiente digital. O metaverso, um mundo paralelo que promete aliar realidade virtual, realidade aumentada e inteligência artificial para simular interações do mundo físico, promete popularizar o uso de óculos 3D e ambientes virtuais que substituirão dinâmicas sociais do cotidiano.

Com o desenvolvimento mais elaborado de grafismos promovido pela indústria de games, o avanço da programação e a difusão do comércio eletrônico, o que antes era ficção, retratada em filmes como Avatar, Matrix, Her, Minority Report, entre outros, começa a se tornar possível.

Hoje já é bastante comum comprar roupa pela internet. O metaverso permitirá o desenvolvimento de avatares (espécie de perfil virtual individual), que contenha suas medidas e aparência exatas. Você poderá entrar na loja virtual, como se estivesse acessando o site da loja, ser atendido por uma vendedora virtual ou pelo avatar de uma vendedora real, e experimentar as roupas, olhar-se no espelho, e comprar o produto que será entregue em poucos dias ou, em alguns casos, em algumas horas em sua casa.

As salas de aula virtuais da educação à distância ganharão muito mais sensação de realidade. Alunos poderão interagir com avatares de colegas em ambientes criados virtualmente, simulando espaços profissionais. Imagine estudantes de engenharia visitando o Empire State sem sair de casa, guiados pelo avatar do professor. Ou, então, futuros médicos realizando operações simuladas em salas de cirurgia virtuais com recursos e equipamentos modernos.

Ao acessar um site de notícias, será possível interagir com jornalistas no local onde os fatos ocorreram, conferir documentos investigados como se estivesse folhando papéis, assumir o lugar de repórteres e entrevistar pessoas representadas por perfis programados por jornalistas que utilizarão inteligência artificial e algoritmos.

Toda esta tecnologia prometida para alguns poucos anos estaria amparada por uma infraestrutura mais avançada. O entusiasmo com o metaverso ganhou ainda mais força no Brasil com o leilão das frequências para transmissão do sinal 5G realizado quinta-feira (4). A nova tecnologia (que já não é tão nova em alguns países) promete acelerar as navegações e dar mais estabilidade às conexões. A evolução vem de encontro com a nova realidade da internet que inclui a aposta na virtualização do mundo real.

A revolução digital iniciada nas últimas décadas e profetizada por teóricos da comunicação como Marshall Mcluhan, depois Pierry Levi e mais recentemente Henry Jenkins, no entanto, continua sem oferecer respostas para questões recorrentes do desenvolvimento tecnológico. E não há, pelo que se nota, possibilidades de se pensar a resolução destes problemas no futuro. Ao contrário. Olhando para a realidade atual, é possível fazer algumas indicações sobre o futuro. E, no meu ponto de vista, elas não são boas.

Diferentemente do que se previa a respeito da popularização da internet, o ambiente digital não tornou o mundo mais democrático. Temos visto a ascensão de movimentos extremistas que não estão dispostos ao diálogo, fruto das confusões causadas pelas redes sociais. Um cenário que tem fomentado a imposição de interesses por meio de governos de cariz autoritário.

A cultura da convergência em ambiente digital tem favorecido grandes corporações de mídia que estão expandindo os negócios para além da comunicação. Facebook, Google, Amazon, Baidu, Yahoo, Rakuten, entre outras, fazem as tradicionais empresas de comunicação dos anos 1990 parecerem pequenos negócios. Para se ter uma ideia, o Facebook faturou US$ 9 bilhões (mais de R$ 50 bilhões) no último trimestre. O Grupo Globo, principal empresa de comunicação do Brasil, faturou R$ 12,5 bilhões em todo o ano de 2020, com lucro de R$ 167,8 milhões, fora as dívidas. Basta compararmos o tempo que as pessoas gastam acessando uma plataforma do Facebook e um canal da Globo por dia para compreendermos o que está acontecendo. Neste cenário, portanto, será cada vez mais presente o consumo em ambientes destas grandes corporações globais e, consequentemente, uma destinação de recursos a estes grupos que poderão reinvestir cada vez mais para manter sua hegemonia, favorecendo a criação de oligopólios que se tornarão obrigatórios para a convivência.

Outra questão preocupante é que neste ritmo é possível que vejamos o crescimento do fosso entre os mais ricos e os mais pobres. O acesso a determinadas tecnologias e conhecimento permitirá que aqueles que ganham mais também tenham condições melhores para investir e ter acesso a serviços exclusivos. Os mais pobres, por outro lado, terão mais dificuldades em adquirir equipamentos ou serviços mais caros. Provavelmente veremos ambientes do metaverso que não estarão disponíveis a quem não puder pagar, a exemplo do que já ocorre no mundo real, para não falarmos daqueles que ainda não têm sequer acesso à internet ou outras tecnologias necessárias para acessar o metaverso. No Brasil, o dado mais recente é de 2019, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), que aponta que quase 40 milhões de brasileiros não têm acesso à internet, cerca de 20% da população do país.

Uma outra questão também importante e que tem preocupado organizações e instituições em geral é a questão da segurança digital. Por mais que se prometam recursos para evitar roubo de dados ou perfis falsos, o que se tem verificado é o aumento de crimes virtuais. A convergência de dados para acessar diferentes plataformas deve facilitar bastante o acesso de criminosos a contas individuais e também de empresas. Se hoje já é comum alguém se passar por outra pessoa no WhatsApp utilizando um perfil falso com sua foto, imagine o que ocorrerá quando forem criados avatares que poderão ser copiados. Em 2020, com o aumento do home office, registrou-se um aumento de mais de 300% nos crimes cibernéticos no Brasil, segundo a Fortinet Threat Intelligence Insider Latin America.

Nesse mesmo rol de problemas devemos considerar, ainda, a insegurança informacional, decorrente da divulgação de conteúdos falsos. Um ambiente que simula com mais precisão a realidade possibilitará que as pessoas estejam ainda mais suscetíveis à desinformação e incapazes de discernir o que é verdade e o que não é.

Preocupa também o futuro de algumas profissões. Com a virtualização dos negócios é possível que muitas atividades desenvolvidas sem a necessidade de formação mais complexa acabem ficando obsoletas, como é o caso de atendentes, vendedores, comerciários, entre outros, que atuam no setor de serviços. Hoje o comércio, o maior gerador de empregos do país, conta com 10,4 milhões de pessoas. Os pequenos e médios negócios que são os que mais geram empregos no país serão obrigados a investir na mudança para avançar nas vendas virtuais, reduzindo custos de venda e com funcionários, ou serão engolidos pelos grandes marketplaces, que são os que têm condições de oferecer experiências de consumo virtual, diversidade de produtos e serviços, preço baixo e velocidade de entrega. Uma tendência, portanto, será o fechamento das lojas físicas.

Por fim, e talvez o aspecto mais preocupante, diz respeito à socialização das pessoas. A pandemia de Covid-19 deu uma boa mostra do que é viver em isolamento social. Problemas psicológicos, como ansiedade e depressão, explodiram nestes últimos dois anos. Cerca de 90% de aumento de casos, segundo estudo publicado na revista científica Lancet em 2020. A vida conectada também tem gerado distúrbios do sono, desencadeado casos de alucinação, doenças nos olhos e articulações, aumento de problemas cardíacos como resultante do sedentarismo provocado pelas horas em frente às telas, entre outras doenças que estão associadas ao uso exagerado de equipamentos do mundo digital. Neste sentido, a saúde, física e mental, deve sofrer bastante no novo ambiente e é possível que as pessoas, sobretudo as novas gerações, tenham que reaprender a viver no mundo real, já que a maior parte das experiências humanas estará condicionada ao ambiente virtual.

Estas são apenas algumas das preocupações decorrentes do desenvolvimento tecnológico e que perseguem a humanidade. A evolução de tecnologias está longe de ser sinônimo de evolução humana. As guerras estão aí para provar do que o ser humano é capaz quando aplica a ciência e a tecnologia para fins obscuros.

Da mesma maneira, é preciso aprofundar o debate a respeito das tecnologias novas que estão em desenvolvimento e procurar prever os problemas que já são perceptíveis e que podem se aprofundar. Neste sentido, os governos precisam exercer o papel de regular este mercado, a ciência de compreender, problematizar e oferecer soluções, e a sociedade, de modo geral, de se inserir neste debate e exigir políticas públicas que permitam o uso racional e adequado das tecnologias que estão em desenvolvimento.

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