Apagão do CNPq é retrato do descaso com a ciência

Cortes anuais no orçamento levam a pesquisa brasileira a um papel cada vez mais coadjuvante

A queda dos sistemas do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) representa o que se espera ser o ápice de uma grave crise que se arrasta na ciência brasileira. O chamado apagão que persiste desde o dia 23 nas plataformas que mantêm o cadastro de aproximadamente 7 milhões de currículos acadêmicos, editais e dados utilizados para o sistema de pagamento de cerca de 80 mil bolsistas da maior agência de fomento à pesquisa do Brasil é uma evidência do descaso com que a pesquisa vem sendo tratada no país.

A situação é caótica. Até esta sexta (30), os servidores públicos do CNPq estão sem acesso a e-mail institucional, telefonia e aos arquivos de rede para dar andamento em várias das atividades cotidianas. Processos seletivos para bolsistas ou para programas de pós-graduação, concursos em universidades, seleção para programas internacionais, prestação de contas e levantamento de documentação para avaliação de cursos estão impedidas de seguirem o cronograma.

O presidente do CNPq, Evaldo Vilela, disse em um vídeo publicado na última terça (27) que o problema não tem nenhuma relação com questões orçamentarias. Pareceu mensagem subliminar para informar exatamente o contrário. Na quarta (28), em uma live pelo Instagram do ministro da Ciência, Tecnologia e Inovações, Marcos Pontes, ele voltou a dizer que o orçamento não era problema e incitou o ministro para que confirmasse a informação. O ministro, visivelmente constrangido, tratou de mudar logo de assunto.

É difícil acreditar nisso. Em algumas ocasiões, Pontes já havia se posicionado publicamente reclamando do orçamento para sua pasta, mas se dirigindo ao Congresso Nacional. O presidente do CNPq também havia feito o mesmo. No dia 30 de abril, ele disse no Fórum das Sociedades Científicas Afiliadas à Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) que o orçamento para a entidade era muito preocupante. “Ao compararmos o orçamento de 2021 com o de 2020, perderemos R$ 114 milhões. Isso é uma tragédia, será um dos menores orçamentos da história do CNPq”, conforme publicado no portal da SBPC.

O caso do apagão tem sido tratado pela instituição, por outro lado, como um problema pontual e meramente técnico. A queima de um storage EMC VNX 8000 que controla os discos rígidos dos servidores seria o grande vilão da história. O caso gerou pânico entre a comunidade acadêmica, inclusive, porque noticiou-se que os dados das plataformas teriam sido perdidos.

Números do Portal da Transparência do governo federal indicam uma redução de 85% no orçamento do CNPq entre 2015 e 2020. Os cortes afetaram distribuição de bolsas de pesquisa, capacidade de investimento em projetos, entre outras áreas. Um aspecto da crise está no número de servidores concursados e comissionados atuais. Atualmente são cerca de 800 pessoas, sendo apenas 300 concursados. Pelo que se vê, eficiência orçamentária não é sinônimo de qualidade dos serviços. Pelo contrário.

Segundo o presidente da Associação dos Servidores do CNPq, Roberto Muniz, não há pessoal suficiente para atender a demanda nacional. “Temos um déficit de servidores. Precisaria de 700 a 800 servidores. O CNPq pede concurso há anos e não é atendido. Recentemente foram pedidas 120 vagas e não foram atendidas. Na área de TI, para se ter uma ideia, tem menos de 10 (servidores públicos). O resto é tudo terceirizado por empresas que fazem o desenvolvimento do programa. Não é só comprar equipamento, precisa de gente qualificada”, defende.

Um funcionário de uma destas terceirizadas que preferiu não se identificar, apontou que o que houve com o sistema do CNPq não foi algo comum. “Hardware pode queimar a qualquer tempo, por isso que você tem um plano de contingência para cada equipamento da sua rede. No final das contas, é um erro de gestão e não um erro técnico. Para grandes instalações como as do CNPQ, quando queima algum equipamento, o usuário nem nota. A equipe substitui por um novo sem que o serviço caia. Desta vez foi um erro de gestão. Eles não tinham um planejamento para substituir o equipamento”, diz o técnico que garante que não havia storage de reposição. A peça que queimou, inclusive, nem é fabricada mais, segundo ele.

O relato contraria o que o informe 3 do CNPq trazia. Segundo o texto, havia já equipamento para substituição, o que parece improvável, tendo em vista o tempo que o sistema está fora de rede. É mais provável que, com o orçamento curto, serviços de manutenção ou compra de equipamentos tenham sido afetados pelos cortes orçamentários.

Em dezembro de 2019 o governo federal anunciou uma redução de custos de 30% com fabricantes de Tecnologia da Informação (TI). A medida adotada impõe um limite de valores a serem pagos em produtos e serviços da Oracle, empresa estadunidense especializada no desenvolvimento e comercialização de hardware e softwares e de banco de dados. Trata-se de uma das grandes multinacionais da área que atende o governo federal, juntamente com a Microsoft.

Toda a parte de TI do CNPq é mantido pela Oracle, incluindo as plataformas Lattes, Diretório dos Grupos de Pesquisa e Carlos Chagas. Uma empresa deste porte deveria estar oferecendo o que há de mais moderno em termos de tecnologia, certo? Fica a pergunta.

“O CNPq pede concurso há anos e não é atendido. Recentemente foram pedidas 120 vagas e não foram atendidas. Na área de TI, para se ter uma ideia, tem menos de 10 (servidores públicos). O resto é tudo terceirizado.”

Roberto Muniz, presidente da Associação dos Servidores do CNPq.

Daqui pra frente

Segundo nota divulgada pela Coordenação de Comunicação Social do CNPq na noite de ontem (29), “estão garantidas a integridade de todas as informações”. Além disso, “a perspectiva é de retorno do funcionamento na segunda-feira pela manhã, com o restabelecimento do acesso aos sistemas do CNPq”.

A questão agora é quem será responsabilizado pelos acontecimentos. A coordenadora de comunicação do CNPq, Mariana Galiza de Oliveira, disse que no momento isto não é prioridade, tendo em vista a urgência para o restabelecimento do sistema. O que não se pode é tratar a questão como um problema pontual ou, pior, tratar como acidente técnico. O caso exige urgência.

Um dos fundadores do CNPq, o físico paranaense César Lattes certamente estaria indignado com a situação se estivesse vivo. Os fatos que resultaram no apagão mancham a história da principal agência de fomento à pesquisa no Brasil. Colocam em questão a confiabilidade do sistema e indicam a ausência de política pública para o desenvolvimento da ciência brasileira. Neste caminho, estamos reduzindo muito as possibilidades de instituições de pesquisa e pesquisadores serem protagonistas nas descobertas e contribuições para a ciência e tecnologia.

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