Quem desdenha dos direitos humanos não pode ser juiz

Aquele que despreza ou minimiza a luta pela afirmação dos direitos humanos e relativiza suas violações não deveria integrar os quadros da magistratura

No dia 7 de maio de 2014 tomei posse no cargo de Juíza Substituta do Tribunal de Justiça do Paraná. Após pouco mais de dez anos e tendo passado por quatro cidades no interior do Estado antes de chegar a Curitiba, sinto que muito transformei a partir das experiências proporcionadas pelo exercício da magistratura. Foi (e ainda é) preciso me despir de dogmas e visões limitadas de mundo para mergulhar nas profundezas das realidades postas sob julgamento, repensando as premissas egoísticas que nos mantêm acomodados na superfície e alheios, como Narciso, a tudo aquilo que não é espelho.

Em meio a esse percurso de transformação e desconstrução definido por incontáveis erros e acertos, progressos e recuos, certo dia ouvi de uma colega dos tempos da faculdade de Direito que ela não me reconhecia mais. “Você está estranha, anda falando muito sobre direitos dos bandidos desde que virou juíza”.

Quis o destino que perdêssemos contato, mas o comentário dela me marcou e muito me dez refletir sobre quem, de fato, eu estava me tornando e quem queria me tornar enquanto magistrada.

Quem desdenha dos direitos humanos não pode ser juiz.

Essa é a conclusão a que chego a partir do comentário da colega e após uma década na carreira: aquele que despreza ou minimiza a luta pela afirmação dos direitos humanos e relativiza suas violações, aquele que de alguma forma nega a dignidade e defende o extermínio de determinados indivíduos e grupos sociais, não pode (ou não deveria) integrar os quadros da magistratura.

O Poder Judiciário serve ao direito, à Constituição Federal e aos princípios por ela encampados, não a interesses e visões particulares de mundo, muito menos àquelas que se pautam em discursos de ódio, preconceito e intolerância contra minorias historicamente marginalizadas e estigmatizadas.

Acerca desse compromisso irrenunciável da magistratura brasileira com a Constituição Federal e postulados por ela assumidos, é sempre bom lembrar que o texto de 1988 conferiu destaque inédito aos direitos e garantias fundamentais, prevendo a dignidade da pessoa humana como fundamento da República logo em seu primeiro artigo, no ápice daquele documento. Isso quer dizer que a dignidade humana funciona como vetor de compreensão de todas as normas do ordenamento nacional e base para a tutela dos direitos fundamentais de todo cidadão.

Assim é que a dignidade humana pode ser definida enquanto feixe de direitos inerentes a qualquer indivíduo, decorrendo da simples condição humana. Não está, portanto, sujeita à discricionariedade de terceiros ou de governantes, não é concedida ou ofertada, mas característica intrínseca e indissociável da pessoa humana. Tal premissa representa o rompimento com qualquer pensamento ou ação tendentes à coisificação do ser humano, concepção esta responsável pelas inúmeras atrocidades verificadas ao longo da História, como a escravidão do povo negro e o holocausto judeu.

Ora, submetendo-se o Poder Judiciário à Constituição Federal e não às pautas ditadas pelas maiorias ocasionais, devem os magistrados brasileiros nortear sua atuação pela salvaguarda dos direitos ali previstos a toda e qualquer pessoa ou grupo que lhe provoque para tanto. Havendo violação de direitos, ali estará o Poder Judiciário para fazer valer o texto constitucional, como seu guardião, sem distinções de qualquer natureza.

De fato, uma das maiores virtudes da Constituição de 1988 foi a de conferir ao Poder Judiciário – e em especial ao Supremo Tribunal Federal – o papel contramajoritário, o qual, longe de representar ativismo indevido ou violação à separação dos Poderes, é elemento basilar da democracia, especialmente em favor das minorias e grupos vulneráveis.

Em regimes democráticos, as maiorias fazem valer sua representatividade por meio do voto, elegendo seus representantes junto aos Poderes Executivo e Legislativo para governá-las e elaborar suas leis. Mas isso não quer dizer, conforme outrora afirmou um ex-Presidente da República, que “as minorias têm que se curvar para as maiorias”. As regras do jogo democrático não permitem a ditadura das maiorias sobre as minorias, e é aí que entra a função contramajoritária do Poder Judiciário: a de garantir proteção aos grupos minoritários sempre que leis e outros atos e omissões das maiorias ferirem ou ameaçarem seus direitos e, portanto, a própria supremacia da Constituição.

Em texto intitulado “Judiciário e minorias”, o professor Geraldo Ataliba ensina: “É que os fracos, os pobres, os destituídos, os desamparados, bem como as minorias (raciais, religiosas, econômicas, políticas, étnicas, etc.), só têm por arma de defesa o direito. E direito só existe onde haja juízes que obriguem o seu cumprimento”.
A partir da valiosa reflexão, podemos citar alguns relevantes exemplos da judicialização como instrumento de concretização e preservação dos direitos fundamentais das minorias.

Em abril de 2012, no bojo da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 54, o STF descriminalizou a interrupção da gravidez de fetos anencéfalos, afirmando a liberdade da mulher para decidir pelo futuro da gestação em caso de anencefalia do feto, condição a ser constatada por meio de laudo médico. Assim, como expressão de sua dignidade humana, não responde pelo crime de aborto aquela que optar pela interrupção da gravidez nessas circunstâncias. Na ocasião, o então Ministro Marco Aurélio, relator do caso, afirmou que obrigar uma mulher a prosseguir com esse tipo de gestação significa submetê-la a uma espécie de “cárcere privado em seu próprio corpo”.

Seguindo, em 2011, por meio da ADI nº 4277 e da ADPF nº 132, a Corte, em julgamento histórico, conferiu interpretação conforme a Constituição ao artigo 1723 do Código Civil e reconheceu como entidade familiar a união estável entre pessoas do mesmo sexo, assentando que “O sexo das pessoas, salvo disposição constitucional expressa ou implícita em sentido contrário, não se presta como fator de desigualação jurídica”.

Já na ADPF nº 186 o STF afirmou, em 2014, que não fere o princípio da igualdade e, portanto, a Constituição Federal, a possibilidade do Estado se valer de políticas públicas e ações afirmativas em favor de grupos sociais determinados, com vistas a corrigir e superar desigualdades históricas. Conclamada a analisar o acesso ao ensino superior e a democratização do espaço universitário em nível nacional, a Corte assim decidiu: “Medidas que buscam reverter, no âmbito universitário, o quadro histórico de desigualdade que caracteriza as relações étnico- raciais e sociais em nosso País, não podem ser examinadas apenas sob a ótica de sua compatibilidade com determinados preceitos constitucionais, isoladamente considerados, ou a partir da eventual vantagem de certos critérios sobre outros, devendo, ao revés, ser analisadas à luz do arcabouço principiológico sobre o qual se assenta o próprio Estado brasileiro”.

Por fim, e longe de exaurir o tema, em outubro de 2023 o STF concluiu o julgamento da ADPF 347, reconhecendo o estado de coisas inconstitucional que acomete o sistema carcerário brasileiro, definido por violações generalizadas e sistemáticas de direitos fundamentais da população privada de liberdade e pela reiterada inércia estatal em modificar tal conjuntura. Em seu voto, reconhecendo a responsabilidade dos três Poderes perante tal quadro e constando diversas determinações visando a superação de tal quadro, o Ministro Relator Marco Aurélio constatou: “As penas privativas de liberdade aplicadas em nossos presídios convertem-se em penas cruéis e desumanas. Os presos tornam-se ‘lixo digno do pior tratamento possível’, sendo-lhes negado todo e qualquer direito à existência minimamente segura e salubre”.

É, pois, na sujeição do juiz à Constituição e na sua tarefa de garantir os direitos ali previstos que repousa o fundamento nuclear da legitimação e da independência do Poder Judiciário perante os demais Poderes. Na caminhada da democracia substancial, que exige a concretização dos direitos fundamentais em prol de cada um e de todos, mesmo quando a maioria assim não deseja, há que se contar com juízes imparciais,

independentes e imunes a pressões na incumbência de invalidar e afastar atos que lesem a Constituição Federal. Tal mister não enfraquece, mas reforça o princípio democrático ao proteger todo e qualquer cidadão contra a tirania da maioria.

É bem por isso que aquele que ignora, nega ou menospreza os direitos humanos não deveria ser juiz. Há aí uma incongruência preocupante. Como conceber um profissional que tem como principal obrigação a garantia da Constituição Federal e dos direitos ali previstos e que, ao mesmo tempo, brade por aí discursos de ódio e intolerância em face de determinados indivíduos e grupos sociais? Que relativize a dignidade humana, que pregue que alguns não merecem a mesma consideração jurídica e humana que outros? Que enxergue a luta por direitos como ‘mimimi’?

Não há como conceber e não há como aceitar. Quando se nega dignidade a uma criança grávida vítima de um estupro, a um preso, ao trabalhador, a pessoas LGBTQIA+, a indígenas, à população negra, a pessoas com deficiência, a mulheres e outras minorias, nega-se a própria Constituição Federal. E, onde não existem direitos humanos, não há espaço para o Poder Judiciário. Dali a justiça se retirou. Ali a humanidade deu lugar à barbárie.

Quem desdenha dos direitos humanos não pode ser juiz.

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