Apressada, entrei na sala de audiências. Era mais uma no meio de uma tarde corrida, cheia de demandas urgentes que precisavam ser resolvidas até o fim do expediente. Sentei-me à mesa e abri o notebook para examinar o processo. Na minha frente, um rapaz preso. Mãos algemadas, cabeça baixa, pés calçando chinelo e meia. Levantou os olhos enquanto mantinha a cabeça voltada ao chão e me fitou, timidamente, esboçando um “boa tarde” em som tão baixo que chegou a parecer que ouvi seus pensamentos. Respondi ao cumprimento e ele sorriu timidamente.
Antes de iniciar, um servidor avisa que a mãe do jovem preso está no fórum e gostaria de assistir à audiência. Eu digo que podem deixá-la entrar na sala. Uma mulher baixa, aparentando pouco mais de 50 anos, aparece e se senta logo atrás do filho. Troca de olhares rápida entre ambos. O sorriso dele, dessa vez, foi largo.
Ouvimos os policiais e fizemos o interrogatório. Instrução encerrada, vista às partes para alegações finais. A mãe ali presente se dirige a mim e questiona se poderia abraçar o filho.
– É que não consigo ir sempre na cadeia, doutora. Fica longe de casa e eu trabalho como faxineira no hospital, aí vira e mexe a minha folga não cai no dia da visita.
Mãos sem algemas se tocam.
– Deus te abençoe, meu filho. Eu rezo por você todos os dias. A mãe não esqueceu você. Nunca vai esquecer.
O silêncio de uma despedida após um longo abraço e um beijo na testa.
O dia-a-dia de uma Vara Criminal é repleto de pequenos e significativos acontecimentos que na maioria das vezes passam desapercebidos, engolidos pelas intermináveis tarefas, metas e burocracias inerentes à atividade jurisdicional. Como juíza criminal há quase 10 anos, reconheço o quão difícil é permanecer atenta à realidade fora do gabinete, o desafio que é enxergar para além da tela do computador e da letra fria da lei. As páginas do processo escondem histórias e dramas que fazem do Direito uma ciência insuficiente, incapaz de alcançar e captar a vastidão da existência humana. A lei nunca me ensinou, por exemplo, que ao julgar um jovem pela prática de um crime, não somente a vida dele estaria sendo atingida.
A Constituição Federal, em seu artigo 5º, inciso XLV, prevê que “nenhuma pena passará da pessoa do condenado”. Trata-se do princípio da intranscendência da pena, que garante que somente a pessoa julgada e condenada por um crime poderá sofrer as consequências da sanção penal, impedindo que terceiros sem qualquer participação no ato ilícito sejam responsabilizados. Porém, a realidade concreta nos mostra um outro lado. O lado dos familiares e afetos que, em liberdade, experimentam o gosto amargo da prisão. Os chamados “condenados invisíveis”.
Na complexidade das relações humanas são inúmeros os exemplos das consequências sofridas por aqueles que desejam manter vínculos com uma pessoa privada de liberdade. E aqui citamos prejuízos de toda ordem, desde materiais até aqueles de natureza moral.
Em primeiro lugar, lembremos da situação dos filhos de mulheres presas que se veem tolhidos do direito à convivência familiar, já que não são raros os casos em que a punição se sobrepõe ao princípio do melhor interesse do menor, com seu encaminhamento a abrigos institucionais e até mesmo à adoção enquanto a mãe está presa. E, por falar em maternidade no sistema prisional, é preciso apontar que, segundo o último Relatório de Informações Penais do SISDEPEN, em dezembro de 2023 havia 230 mulheres gestantes e 103 lactantes no sistema prisional, além de 99 crianças. Você não leu errado: há no Brasil, neste momento, crianças de até 2 anos encarceradas com suas mães.
Crianças nascidas no cárcere. Crianças presas.
Citamos ainda os casos de pessoas que eram provedoras do lar, como mães e pais em relação aos filhos e filhos em relação a pais idosos. A prisão também representa sérias mudanças na realidade dessas famílias, sobretudo considerando o perfil da população prisional brasileira, a maioria representada por pessoas advindas de baixos estratos sociais e submetidas a toda sorte de precarização existencial, tais como o acesso à renda e ao trabalho dignos.
Como mais uma demonstração dos reflexos no círculo social da pessoa privada de liberdade, falamos agora sobre as visitas às unidades prisionais. A Lei de Execuções Penais prevê, em seu artigo 41, inciso X, que todo preso tem direito a receber visita do cônjuge, companheiro, parentes e amigos. Esse contato com o mundo exterior tem por finalidade aliviar o isolamento imposto pelo cumprimento da pena e favorecer sua ressocialização, incentivando-o e preparando-o para o regresso à vida em sociedade.
Todavia, a precariedade estrutural das prisões brasileiras, notoriamente definidas por violações sistemáticas à dignidade da população carcerária, não recai apenas sobre aquele que está privado de liberdade, mas também sobre mães, pais, filhos, cônjuges e companheiros, que não dispõem de espaços minimamente apropriados para a realização de visitas íntimas e familiares. O ambiente prisional é hostil e penaliza além da pessoa encarcerada, ocasionando situações humilhantes na realização de visitas íntimas, que na maioria das vezes são organizadas pelos próprios detentos e sem a privacidade necessária.
A insalubridade das cadeias também atinge em cheio o direito à convivência paterna/materna de crianças e adolescentes, expostos a um ambiente de tensão e estresse incompatível com sua condição de pessoas em desenvolvimento e destinatárias de proteção especial. Um dos exemplos mais emblemáticos é o fato de não serem poupadas das inconstitucionais revistas vexatórias, havendo denúncias sobre crianças despidas e fraldas inspecionadas por agentes do Estado antes do ingresso no estabelecimento prisional.
As revistas vexatórias são, na nossa concepção, o maior símbolo do castigo imposto àqueles que desejam manter vínculos com a pessoa encarcerada. O procedimento, defendido pelo Estado como um “mal necessário”, já que evitaria o ingresso de materiais ilícitos e proibidos no ambiente prisional (armas, celulares, entorpecentes, etc), é realizado em absoluto desrespeito às garantias constitucionais da vida privada, da honra e da imagem, com visitantes desnudados e submetidos a agachamentos e buscas nas cavidades íntimas por agentes públicos. E, com o já dito, a prática não poupa idosos, pessoas com deficiência e até mesmo crianças e adolescentes, as quais, além de serem alvo, também presenciam mães, avós e outros parentes subjugadas pelo indigno procedimento.
As denúncias são tantas e tão alarmantes que, atualmente, pende no Supremo Tribunal Federal o julgamento sobre a inconstitucionalidade da revista íntima e vexatória nas unidades prisionais e da legalidade de eventuais provas obtidas por esse meio (ARE 959620, com repercussão geral – Tema 998). O relator do caso, Ministro Fachin, já proferiu seu voto pela inconstitucionalidade do procedimento, por ele considerado tratamento desumano e degradante. Assinalou, ainda, que as revistas pessoais são legítimas para garantir a segurança e evitar a entrada de equipamentos e substâncias proibidas no ambiente prisional. Todavia, devem ser realizadas com o auxílio de equipamentos eletrônicos, vedando-se sob qualquer forma o desnudamento e inspeção nas cavidades corporais dos visitantes.
Por fim, mas não exaurindo o tema, que é, infelizmente, repleto de exemplos, há também que se falar sobre transferências de detentos para presídios distantes de sua residência. A medida funda-se, em tese, no interesse da segurança pública ou para proteção do próprio preso, mas o que se verifica na realidade são remoções arbitrárias e sem qualquer fundamento concreto. Como resultado, mais uma vez o círculo social do preso é atingido, com famílias que se veem obrigadas a mudar de cidade ou até mesmo de Estado caso desejem manter um vínculo com o ente que se encontra recluso. Para trás, deixam empregos, afetos, estudos, histórias de vida. À frente, uma vida de incertezas no desconhecido, de humilhações e danos irreparáveis que vão além de ter um familiar sob a custódia do Estado.
Diante desse quadro, é impossível não questionar o princípio da instranscendência da pena e o que hoje tem representado não somente ao preso, mas principalmente à sua família. Como falar que a pena não passará da pessoa do condenado diante da massiva e estrutural violação de direitos dos familiares das pessoas privadas de liberdade? Conforme certa vez ouvi de uma esposa de um recluso, “o preço é muito alto e eu já estou exausta de pagar”.
Ainda que a Constituição preveja, em seu artigo 226, a família como base da sociedade, conferindo-lhe especial proteção do Estado, nota-se que sua importância parece se restringir àqueles que estão em liberdade ou que não têm parentes encarcerados. O Estado tem falhado – e muito – no dever de proteção dessas famílias. Pouco ou nada se nota de investimentos públicos em estruturas que fortaleçam os laços familiares durante o cumprimento da pena, resultando em danos irreparáveis a todos os envolvidos, e inclusive à própria sociedade.
Existem vidas por trás de um processo criminal. Existem mulheres, crianças, idosos cujo único desejo é amparar o ente encarcerado. No terreno do sistema de justiça criminal, tão árido na concretização dos direitos e garantias fundamentais, a vida teima em florescer. E a vida floresce no abraço apertado da mãe no filho ao final da audiência.
Estejamos atentos às existências para além do cárcere. Há vida.
Sobre o/a autor/a
Fernanda Orsomarzo
Fernanda Orsomarzo é Juíza de Direito no Estado do Paraná. Mestre em Direitos Humanos e Políticas Públicas pela PUC-PR. Membro da Rede Justiça Pelos Direitos Humanos no Paraná (REJUDH-PR) e colaboradora do Grupo de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário (GMF/TJPR).