Nas últimas semanas acompanhamos diversas notícias sobre a Emenda Constitucional 133/2024, que prevê o perdão dos débitos de partidos políticos multados por terem descumprido a aplicação mínima de recursos em candidaturas pretas e pardas, desde que invistam esses valores em candidaturas que se enquadrem nas cotas raciais nas quatro eleições a serem realizadas a partir de 2026. A emenda também obriga os partidos políticos a destinarem 30% dos recursos do Fundo Eleitoral e do Fundo Partidário às candidaturas de pessoas pretas e pardas.
A emenda representa muito bem a questão racial no Brasil, ao mesmo tempo em que se garantem direitos, apaga-se da história a supressão deles no passado. Ou, ainda pior, defende a ideia de democracia e harmonia racial, em que pessoas negras e brancas gozam de iguais oportunidades. Perdoam-se os partidos políticos que, deliberadamente, apropriando-se de recursos públicos, descumpriram a política de estímulo às candidaturas negras e tal cenário tem, por consequência, a exclusão de negros de estarem em espaços políticos decisórios.
Na verdade, o perdão demonstra a forma como a questão negra é tratada no país. A seriedade e a segurança, que se esperam do sistema jurídico, são flexíveis quando a cor da pele dos interessados é escura. Violar direitos fundamentais de pessoas negras sempre foi algo perdoável e revela uma ferida narcísica daquele que esconde os seus delitos. A política da inimizade é o marco das relações raciais entre nós e, nesse caso, não foi diferente.
A chamada “cota racial partidária”, hoje consolidada pela Emenda Constitucional 133/2024, começou a ser exigida nas eleições de 2022 e gerou casos escabrosos, com o aumento de declarações de candidatos pretos e pardos, que até então declararam-se brancos, o que podemos intitular de afroconveniência. A política afirmativa veio por Resolução do Tribunal Superior Eleitoral, que foi referendada pelo Supremo Tribunal Federal na Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental 738.
A questão tem muitos ângulos. Um caso emblemático aconteceu em 2022, na Bahia, Estado brasileiro com a maior concentração de pessoas pretas e pardas no Brasil, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE), e epicentro da diáspora africana. O território baiano marca a história da resistência negra durante o período escravocrata, irradia os valores que preservam e enaltecem a negritude e resiste como o Ilê Ayê e o Olodum.
Na corrida eleitoral, houve o enegrecimento visual de um candidato ao Palácio Rio Branco. Um conhecido político, que já havia sido deputado federal e prefeito de Salvador, apareceu com o tom de pele mais amorenado, com suspeita de ter feito bronzeamento artificial. Ao lado do enegrecimento de sua imagem conhecida, até então, do eleitorado, em seu registro de candidatura também declarou-se pardo. Não demorou e uma enxurrada de memes tomou conta do debate político, que foi explorado pelo adversário do candidato, com esta frase: “Nunca me falou que era negão”.
Em 2024, a história parece se repetir por todo o Brasil, pois dos 239,3 mil candidatos negros, 11% já se declararam brancos em eleições anteriores. Dos candidatos a prefeito, 23% já se autodeclararam brancos em alguma eleição e mudaram a informação de cor neste ano.
Há uma disputa para reconhecer-se negão, diante dos benefícios advindos de uma ação afirmativa necessária ao enriquecimento do debate público, pois insere diversidade e pluralidade nos espaços de tomada de decisão. No entanto, mais uma vez o jeitinho brasileiro distorce a finalidade das regras e o branco permanece branco. É como disse Carolina Maria de Jesus, com fina ironia, sobre o 13 de maio: “Deus ilumine os brancos para que os pretos sejam feliz”
O branco – ou branquidade para os mais estudiosos do tema – é aquela criança do maternal que não foi ensinada a dividir os seus brinquedos ou a permitir que o outro falasse. Essa maneira de compreender o mundo afeta inclusive pessoas negras, que se submetem às mais diversas amputações simbólicas – e muitas vezes concretas -, para usufruir de direitos.
Lembre-se que num passado próximo, foi caricatural o episódio de um jogador de futebol do Fluminense, no século passado, que passou pó de arroz no rosto – enbranquecendo – quando não se admitiam jogadores negros nos campeonatos.
Em um olhar mais desatento, podemos de maneira desavisada igualar os episódios do político e do jogador e afirmar que ambos buscaram máscaras para usufruir de vantagens destinadas ao grupo racial do qual não fazem parte. Uns segundos a mais de reflexão e sensibilidade ao contexto social brasileiro, nos leva à percepção que um tem tudo e nada cede; e o outro nada tem e, mesmo mascarado, pouco recebe.
No nosso racismo de assimilação, quanto mais escura a tonalidade da pele maior a violência racial e negativa de direitos. E, no processo de autorrejeição, a pessoa negra normalmente incorpora padrões que a afastam da identidade racial – como o pó de arroz e o alisamento de cabelo – a pretexto ser aceita em ciclos socioculturais conformados pela branquidade.
A situação está num contexto maior que leva a duas reflexões, principalmente em período eleitoral de discussão sobre a legitimidade dos representantes do povo.
A primeira é que a pauta identitária passou a influenciar as escolhas do eleitorado. Fruto de interjeições de movimentos sociais e políticos há um reforço à construção da identidade como um espaço comum totalitário. Ainda que se tenham críticas quanto à armadilha que o isolamento em identidades (gênero, raça, orientação sexual, religiosa) possam causar, elas possibilitam reflexões sobre a posição dessas pessoas na sociedade, diante de transformações que se pautem pela concretização de direitos humanos.
Portanto, o problema não são as pautas identitárias, mas o uso delas com o objetivo de angariar poder e não direitos para aqueles grupos, que historicamente já foram dilapidados em toda sua dignidade.
Assim, com o fim de se identificarem com os eleitores – sem qualquer sinceridade – candidatos têm se apropriado, por pura conveniência, de identidades que não possuem. Pessoas, assim, que nunca se afirmaram ou que não são pretas ou pardas se afirmam como tal. A lógica de meios e fins, já escancarada por Maquiavel há mais de quinhentos anos, dá o tom das escolhas. Para vencer as eleições, ter o poder e conquistar o voto, vale tudo, até enegrecer o branco.
O controle, nesse campo, cabe ao debate político: aos eleitores, aos outros candidatos e à opinião pública. É nessa arena que devem ser expostas e retiradas as máscaras negras que encobrem as peles brancas.
A segunda reflexão é relativa ao acesso ao fundo partidário. Com o fim de incentivar candidaturas de pessoas pretas e pardas, estabeleceu-se que fatias do fundo eleitoral – forma de financiamento público das eleições – a que os partidos políticos têm direitos (para ser candidato, no Brasil, obrigatoriamente, a pessoa deve estar filiada) reservou valores para candidaturas de pessoas pretas e pardas.
Aqui, temos a outra face da afroconveniência.
Partidos políticos que recrutam candidaturas de pessoas que não são negras, com autodeclarações irreais, apenas para ter acesso a recursos públicos e redistribuir entre outras candidaturas, ou candidatos que não são pretos ou pardos, que assim se declaram para terem acessos a tais vantagens. Aqui, além do controle popular, tem especial proeminência o Ministério Público Eleitoral, enquanto fiscal da regularidade do processo eleitoral, cabendo responsabilizar, impugnar partidos e candidatos que burlam as candidaturas negras.
Em suma, a afroconveniência é só mais um mecanismo do bem-sucedido racismo brasileiro, para que o poder e o dinheiro, que se retroalimentam, continuem nas mesmas (brancas) mãos. Dito de outro modo, o privilégio da branquidade se articula até para, quando utilitário, se apropriar da negritude. Mas não sem resistências, pois os tapas-olho que devem ser retirados e as cegueiras brancas expostas.
E para encerrar, voltamos à Bahia, com Ilê Ayê:
“Branco, se você soubesse
O valor que o preto tem.
Tu tomava um banho de piche, branco
E ficava preto também”