Patricia procurou a Promotoria de Justiça de sua cidade, pois estava preocupada com sua irmã mais nova. Ela tinha completado dezoito anos, acabara de se casar, mas estava angustiada de deixar sua irmã morando com seus pais. De forma distante, como se falasse de outra pessoa, contou que desde os seis anos era abusada sexualmente por seu pai, de quem engravidou e tinha um filho criado por sua mãe. Nunca contou a ninguém sobre os abusos, tampouco sobre a paternidade do filho. Disse que foi de um namorado desconhecido. Agora, preocupava-se, pois sabia que o genitor faria o mesmo com sua irmã, o que de fato aconteceu.
Enquanto ela narrava sua história, busquei acessar o que tinha aprendido com psicólogos e acolhê-la da melhor maneira possível, mas em situações como essas nos faltam palavras para consolo. O abraço foi a melhor resposta que consegui dar. E a Justiça, nesse caso, também deu uma reposta eficaz.
Alicia, cinco anos, também foi abusada sexualmente por um tio, que passava as mãos em suas partes íntimas. Quando questionada pelo psicólogo do Judiciário, afirmou que não doeu no seu corpo, mas no seu coração.
A forma simples e sincera com que disse isso, me emocionou. Como alguém pode fazer tanto mal a um ser tão puro e inocente?
Infelizmente, casos como esses ocorrem com muito mais frequência que podemos imaginar. Para quem trabalha no Sistema de Justiça, trata-se de um triste rotina. São audiências e oitivas todos os dias com relatos dos mais cruéis abusos sexuais.
Como Promotora de Justiça atuante na seara criminal e da infância e juventude, após ouvir um relato de violência sexual de uma criança ou adolescente, sempre me pergunto como poderíamos, enquanto sociedade, ter impedido aquele fato. E ainda, como aquela vítima se recuperará da crueldade que lhe foi imposta.
No Brasil, em 2022, de acordo com dados do Fórum de Segurança Pública, mais de quatro meninas com menos de 13 anos foram estupradas por hora no Brasil. São infâncias e vidas dilaceradas!
E o mais chocante! Mais de 70% (setenta por cento) das violências ocorrem no interior da residência da vítima, por familiares ou amigos destes. A família, assim, indiretamente, também é vítima.
Todo ano, no dia 18 de maio, a sociedade é chamada a refletir sobre o Combate ao Abuso e Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes. A escolhe deste dia foi uma forma de fazer justiça a Araceli, uma menina de oito anos que, em 1973, foi drogada, estuprada e morta por jovens de classe média alta, no Espírito Santos, que até hoje estão impunes.
Mas só um dia não basta. É necessário que se lute e se garanta uma infância longe desse, e de outros tipos de violência a todas as crianças e adolescentes do país.
O primeiro passo, enquanto sociedade, é reconhecer que essa violência é algo estrutural, com base, infelizmente, no sistema patriarcal, na medida em que a maioria das vítimas são do sexo feminino.
Assim, meninas de dez anos que mantém (pseudos) “relacionamentos” com homens maiores de dezoito anos, mesmo que com consentimento delas e dos genitores, são, na realidade, vítimas de crime sexual, o que já foi reconhecido pelo Superior Tribunal de Justiça.
O segundo passo, é romper o silêncio. E isso significa levar conhecimento às crianças e adolescente sobre o que é um abuso sexual, como identificar tais atos e como pedir ajuda.
A título de exemplo, muitos acreditam que estupro ocorre apenas com a conjunção carnal, quando na verdade, o tipo penal abrange também outros atos libidinosos. Não raro, após palestras em escolas, alunos identificam que estão sofrendo abusos sexuais.
O terceiro passo, é acreditar na vítima. A dúvida sobre a fala da vítima é a principal arma do abusador, para que os crimes se perpetuem e a impunidade prevaleça.
Ao receber o relato de um abuso sexual, o ouvinte deve partir da premissa de que a vítima fala a verdade. Abusadores sexuais não têm “classe social, cor, ou sexo definidos”, tampouco são “loucos”. Pelo contrário. O cotidiano mostra que são pessoas tida como “acima de qualquer suspeita”, que analisam a vítima e seu cotidiano, valendo-se da proximidade para praticar a violência sexual. Muitos autointitulam-se como “enviados de Deus”, para mascarar sua perversidade.
Noutro giro, também é importante pensar no abusador. Há pesquisas que indicam que muitos deles foram vítimas de abuso sexual na infância, alguns possuem algum tipo de transtorno mental ou comportamental. Outros praticam os crimes por pura maldade. O fato é que, embora as penas para os crimes sexuais contra crianças e adolescentes sejam altas, após o seu cumprimento esses agressores voltaram à sociedade. E o grande desafio é pensar em maneiras de reinserção ao convívio social, evitando-se a reiteração delitiva.
Por fim, o Ministério Público, o Poder Judiciário, a Defensoria Pública e todos os órgãos públicos devem sempre aprimorar o atendimento às vítimas, buscando mitigar os danos já sofridos e evitar novas violações de direitos durante a investigação dos fatos.
A ação dos operadores do Direito deve ser imediata; um dia mais, pode significar novos abusos sexuais e novos sofrimentos físicos e mentais. Nesse ponto destaca-se que a vítima deve ser ouvida sobre o crime apenas uma vez, conforme prevê a Lei 13.431/17; a depender do tipo de violência sexual sofrida, deve ser atendida no Sistema Único de Saúde, de acordo com os protocolos para atendimento às pessoas em situação de violência sexual e ser cientificada de todos os seus direitos, inclusive de interromper eventual gravidez.
A implementação desse conjunto de iniciativas, aliadas a outras medidas protetivas previstas na Lei 8.069/90, esvaziaria o debate sobre o aborto em caso de estupro, que tomou conta do Brasil neste mês, em razão do abominável Projeto de Lei nº 1904/2024. Em resumo, o texto prevê a condenação de vítimas de estupro que desejem abortar após a 22ª (vigésima segunda) semana de gestação, impondo-lhe uma pena maior que de seu algoz.
Além da violência sexual, que, por si só, acarreta danos físicos e psicológicos imensuráveis, a ideia é impor à vítima, em sua maioria meninas e mulheres negras e pobres, a cruel escolha entre ter o filho fruto da violência ou ser encarcerada, caso opte por interromper a gravidez.
O projeto, portanto, é uma afronta aos direitos das mulheres. Como bem pontuou a advogada Fayda Belo “não é sobre ser contra ou a favor do aborto. É sobre não apelar à criminalização de meninas e mulheres ignorando o câncer que é a violência sexual no Brasil”.
Assim, a grande preocupação da sociedade e do Poder Legislativo que a representa, não deve ser exclusivamente com as consequências dos crimes sexuais, como a gravidez, mas em criar e implementar medidas que impeçam essa violência de acontecer. A título de exemplo, sugere-se eventos que auxiliem os pais ou responsáveis sobre a importância de uma comunicação aberta e sincera com os filhos; inserir, no calendário escolar, programas de prevenção de abuso, destacando-se a importância do consentimento, além de promover debates sobre o uso seguro da internet.
É preciso, portanto, ter viva a memória de tantos crimes, como o de Araceli, que ficaram impunes, buscar sempre a verdade, ainda que ela seja quase inacreditável, e recorrer ao Sistema de Justiça para que não haja repetição dos abusos.
A prevenção, assim, ainda, é a arma mais eficaz nessa guerra pela proteção de nossas crianças e adolescentes. A cor escolhida para dar visibilidade a esse combate ao abuso e à exploração sexual infantil no Brasil foi o laranja. Dizem que essa cor traz força, coragem, determinação e ousadia, afastando o medo e a covardia.
Meu desejo é que crianças e vítimas de violência sexual encontrem força e coragem para denunciar os crimes, rompendo o ciclo de medo que os covardes agressores lhe impuseram; sejam acolhidas por profissionais do Sistema de Justiça determinados a ajudá-las e a impedir novas violações de direitos; e encontrem na sociedade aliados que lhes devolvam a ousadia de sonhar e viver com paz e liberdade!
Sobre o/a autor/a
Ana Caroline Monteiro de Moares
Promotora de Justiça do MPPR. Especialista em Direito Público. Pós-graduanda em Direitos Humanos e Cidadania Global