Vulneráveis

Ninguém sabia que meu cérebro iria demorar meses, e talvez anos para se recuperar, muito menos que eu era uma pessoa que recém tinha adquirido deficiência, e que tudo isso geraria explosões de frustrações e angústia

Chata, ingrata, vitimista e preguiçosa. Por que muitos sobreviventes são chamados desse jeito quando voltam para casa? A culpa não é deles, nem do outro. Mas da tal vulnerabilidade.

Até hoje acredito que meus amigos não sabiam exatamente o que era lidar com uma pessoa com o cérebro machucado, e de todas as decorrências físicas e emocionais disso. Realmente é muito complexo, já que o próprio órgão é complicado em si. Acredito que após o susto de quase me perderem, todos tiveram a ilusão de que, logo depois da alta, eu voltaria a ser a mesma pessoa de sempre. De certo modo, eu realmente era a mesma, só que numa condição diferente, cheia de contrastes.

Saí do hospital tendo a certeza de que teria outro AVC em poucos dias. Também pudera, foi um festival de AVCs (transitório, hemorrágico e isquêmico) em menos de vinte dias, todo aquele trauma vivenciado na UTI, para, no fim, o meu corpo ficar todo encolhido e limitado. Tudo era muito difícil, quase impossível: precisava de ajuda para tudo: abrir o botão da calça, ir ao banheiro, tomar banho, me vestir, comer… Nem eu, nem ninguém tinha dimensão dos enormes desafios que o cotidiano iria impor, e de como eles iriam sobrecarregar a todos nós. E todo esse acúmulo de funções foi gerando um desgaste imenso, que se transformou em mágoa e afastamento.

Ninguém sabia que meu cérebro iria demorar meses, e talvez anos para se recuperar, muito menos que eu era uma pessoa que recém tinha adquirido deficiência, e que tudo isso geraria explosões de frustrações e angústia. Hoje acho importante que verdades como essas sejam ditas, para que tanto o paciente como o cuidador tenham dimensão do que os espera na vida pós-AVC.

 A impressão que dá é que um imenso muro é erguido entre nós e aqueles que amamos. A comunicação é falha em muitos aspectos, e há pouco espaço para a empatia (a difícil arte de compreender o outro). Lembro que uma querida amiga comentou comigo que agora que eu estava de licença do trabalho, poderia aproveitar o dia para fazer um curso de caligrafia, que eu tanto queria, e fiquei envergonhada de falar para ela que ainda não conseguia reconhecer todas as letras do alfabeto. Eu via as minhas sequelas como defeitos, que deveriam ser urgentemente corrigidos, e lutava para escondê-las de todos.

Depois de alguns dias, o pessoal montou um grupo de conversa num aplicativo para me auxiliar quando eu precisava, só que eu sempre pedia ajuda, o tempo todo. Pedia ajuda para me vestir (porque eu não conseguia fazer isso sozinha devido à hemiparesia), e para ir ao banheiro, precisava esperar que alguém pudesse abrir os botões da minha calça (porque não tinha força, nem mobilidade para isso) e depois para fechá-lo novamente era a mesma demanda. Perdi a conta de quantas vezes pedi isso aos vizinhos, que no início ficavam constrangidos com tamanha intimidade, mas depois foram se acostumando.

Hoje percebo que estar naquele grupo de conversa deveria ser bem chato, e confesso que para mim também era. Sempre me orgulhei de ter me tornado independente muito cedo na vida, e de repente perder toda a autonomia por causa de AVC foi muito cruel. Devastador. Era como se tivesse me tornado criança e idosa ao mesmo tempo, pois estava reaprendendo ações infantis, ao mesmo tempo em que me deparava com limitações da terceira idade: como ter impaciência e usar bengala. Até hoje sinto que o meu cérebro envelheceu e rejuvenesceu ao mesmo tempo, e isso até se refletiu nas minhas amizades atuais, em que transbordam crianças e idosos. Tornei-me uma espécie de Rei Lear às avessas: hoje tenho um cérebro sábio num corpo jovem. Também pudera, passei por desvarios semelhantes ao personagem shakespeariano no meu primeiro ano após AVC, alguma coisa sobre a vida eu tinha que aprender.

A troca de afetos tão essencial nas relações humanas também foi prejudicada. Eu, que sempre fui tão empática, não conseguia me conectar com essa habilidade nos primeiros meses. Era impossível me colocar no lugar do outro, já que o simples ato de levantar-me da cama era tão exaustivo. Todo meu esforço era para as pequenas coisas, e isso não deixava espaço na minha cabeça para ninguém. Com isso, meus relacionamentos sofreram um imenso baque, principalmente porque a vulnerabilidade dos meus queridos começou a explodir em terríveis palavras, e muitos deles foram se afastando.

Depois, nos grupos de apoio, descobri que essas sensações de desprestígio e abandono social são sentidas por todos os sobreviventes. O AVC para nós é uma injusta ferida física e psicológica, e ela é tão intensa, que transborda para todos os lados. São poucos os que resistem com bravura a essa mudança tão drástica. Os danos causados por uma lesão cerebral precisam de muito cuidado, o tempo todo. Toda atenção para cada fragilidade é necessária, e isso é exaustivo.

Só passei a me comportar melhor a partir do instante em que aceitei que estava vulnerável, e todos que eu amava, embora de um jeito diferente, também passavam pelo mesmo estado. Entendi que, por mais que as pessoas não compreendessem a imensa lascada que eu havia me metido, eles não eram responsáveis pela minha dor. Sim, cada um era responsável por suas palavras e atitudes (não vou “passar pano”), mas as consequências delas em mim eram algo que eu deveria trabalhar em minha nova vida.

Quando não temos consciência do que está acontecendo diante de um grande sofrimento, a tendência é se culpar ou culpar o outro. Passei pelas duas situações logo no início da minha reabilitação, sei bem como é. Exatamente por isso que camuflar as consequências de uma lesão cerebral só traz sofrimento para todos. É difícil mesmo, não há como romantizar. Todos estão lascados, principalmente o paciente, que terá que ressignificar todos os aspectos de sua vida para um dia ousar sorrir novamente.

Nenhum sobrevivente é vitimista, mas vítima de um acidente vascular cerebral.  Nenhum sobrevivente é chato, simplesmente está cansado. Nenhum AVCista é ingrato, apenas ele não saiu do hospital do jeito que era antes, e isso dói demais. Também não existe espaço para autossabotagem a fim de chamar atenção. Não, meu caro, o buraco é mais embaixo. Tudo o que a gente quer é desesperadamente suprir as nossas necessidades mais básicas e acordar desse pesadelo da imobilidade. Nenhum adulto quer ficar eternamente dependente do outro.

Também é importante salientar que quando se chama uma pessoa de vítima, a pessoa automaticamente se coloca no papel de salvador, e nenhum desses lugares é construtivo, já que relações só são benéficas quando se dá entre iguais. Todo sobrevivente de lesão cerebral é o mesmo por dentro, ele apenas precisa de afeto e oportunidades para se reencontrar, e perceber o quão vitorioso ele é. Quando ele entende isso, ele volta muito mais forte para a sua rotina: totalmente vulnerável (como todos somos), porém indestrutível.

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