Um novo olhar

Às vezes, me pego pensando: como será que as pessoas que me leem me imaginam ser? Será que acham que ainda estou acamada, cheia de acessos, usando fralda e uma sonda nasogástrica? Eu já fui assim, hoje não mais

Lidar com uma vida após uma tragédia exige muita autoestima e senso de ressignificação. É preciso olhar a si mesmo de outra forma e lidar com o ponto cego imposto pelo mundo à nossa volta. Este é o grande desafio de todo sobrevivente de AVC, e de todo ser que habita esse mundo.

AVCista não sai de casa. Foi essa frase que ouvi nos meus primeiros dias em um dos grupos de apoio de sobreviventes de AVC. Também pudera, encontramos tantas dificuldades fora de casa, que sair dela é literalmente sair da nossa zona de conforto. Mas, como sou um pouco afrontosa por natureza, aceitei o desafio das ruas esburacadas e dos olhares assustados e piedosos dos curitibanos assim que pude. Naquela época, ir até uma padaria a poucas quadras da minha casa era uma verdadeira odisseia. Mas, se quisesse pão, tinha que ir até ela. Fazer o quê! E apesar de todo esse percurso ser muito difícil, de certa maneira me abriu portas para muita coisa, inclusive para a sociedade.

Já que atualmente a minha deficiência é considerada não aparente (ando sem bengala e mexo ambas as mãos), as pessoas não me olham mais com tanto espanto quando saio de casa. Acontece até o contrário, elas se admiram quando menciono que passei por mais de um Acidente Vascular Cerebral e que hoje sou uma Pessoa Com Deficiência por consequência disso. Não ter limitações aparentes com certeza me protege de muitos preconceitos, mas isso não significa que não haja dificuldades em meu caminho, como: engasgos frequentes, problemas com localizações, incapacidade de identificar objetos, dificuldade para reagir prontamente diante às argumentações e, claro, a famosa “mancadinha”. Todos esses aspectos geram tantas surpresas ao mundo pelo óbvio: sobrevivente de AVC não sai de casa e poucas pessoas têm ideia de como realmente somos, tanto por dentro como por fora.

Às vezes, me pego pensando: como será que as pessoas que me leem me imaginam ser? Será que acham que ainda estou acamada, cheia de acessos, usando fralda e uma sonda nasogástrica? Eu já fui assim, hoje não mais. Porém, muitos dos meus colegas de AVC ainda estão nesta situação delicada. E mesmo assim, são capazes de serem bem-humorados, de se conectarem com tudo ao seu redor e emitir opiniões. Também há aqueles que se locomovem com auxílio de cadeiras de rodas ou de uma charmosa bengala. Alguns têm uma das mãos imóvel e encurvada, enquanto outros as têm fortemente estendidas. Há também os que não falam (ou que falam com dificuldade) e aqueles que conseguem se expressar muito bem. Todas essas características são apenas detalhes no universo da personalidade de cada sobrevivente de AVC. Só que as pessoas fora desse mundo não sabem disso. Também pudera, não saímos de casa!

Mesmo com sequelas diferentes, nos sentimos iguais em relação ao terrível “olhar do outro” que nos constrange e aprisiona toda vez em que utilizamos nosso direito de ir e vir. Há quem diga que o problema é a falta de acessibilidade, e de fato ela é essencial, porém, o que mais nos incapacita é ser tratado como esquisito e desafortunado pelo fato de ter tido um ou mais AVCs. Se você for parar para pensar, perceberá que essa situação se estende a todas as pessoas com deficiência. Quantas delas você conhece? Quantas encontra pelas ruas? Será que esse número é compatível com os milhares de brasileiros PCDs? Mesmo não te conhecendo, ouso dizer que não. Vivemos num país em que apenas 1% das pessoas com deficiência trabalham e têm acesso às oportunidades. A maioria fica enclausurada, muitas vezes, sofrendo abuso físico e psicológico.

Todo sobrevivente de AVC tem uma lesão permanente no cérebro, e isso, por si só, já o define como PCD. Como o machucado de cada um é diferente em extensão, nossas deficiências se estendem a vários graus. É claro que uma pessoa que tem um grau elevado de limitações enfrenta muitos mais obstáculos do que eu (que tenho um grau considerado leve) para sair de casa. Nunca ousarei dizer que essa diferença é inexistente. Porém, acredito que todo AVCista tem o direito de estudar, trabalhar, se apaixonar e formar uma família. E para que tenhamos oportunidades de usufruir da vida tão dolorosamente reconquistada, é preciso que antes, conquistemos empoderamento suficiente para enfrentar o mundo de cabeça erguida.

O ideal seria unir a nossa vontade de sair de casa com uma boa receptividade das pessoas. Nossa, seria um sonho! E essa ideia de sermos aceitos e respeitados em sociedade é muito mais do que uma tranquila ida à padaria, para nós, ela é uma outra questão de sobrevivência. Para que isso seja possível, precisamos ser vistos e aceitos. Adquirir visibilidade nesse mundo vai muito além de receber curtidas numa rede social, significa conquistar direitos, inclusive o de existir.

Para readquirimos o status de nos tornarmos “visíveis”, o caminho é muito mais complexo do que criar coragem para botar o pé para fora de casa. É preciso modificar os olhares, tanto de nós (AVCistas) sobre nós mesmos como da sociedade perante a gente. Não somos vítimas, mas sobreviventes. Não somos coitados, mas vencedores. Não podemos ter vergonha do nosso corpo, do nosso mancar e da nossa falta de habilidade linguística, pois essas características são cicatrizes da nossa luta pela vida. Se a maioria das pessoas entendessem isso, teríamos mais oportunidades para reconquistar uma parte do que era a nossa vida antes do acidente: um dos nossos maiores sonhos.

Todos nós como seres humanos, apesar de sermos diversos, temos algumas semelhanças na vida, como: passar por tragédias pessoais, ter medo da opinião do outro ou tomar medicamento para suprir alguma dor. Não existe pessoa que não sofra por algum motivo, e justamente por isso deveríamos ser mais empáticos em relação às limitações dos outros. Nos grupos de apoio de AVC todo mundo entra muito machucado, e mesmo tendo histórias diferentes recebe carinho e acolhimento. Diante de distintas dores, compreendemos que uma forma eficaz delas serem aliviadas é por meio da escuta. Sabemos disso justamente não por não sermos escutados. Mas lá, no nosso cantinho virtual, podemos falar e sermos ouvidos. Por meio da minha experiência aprendi muitas coisas com os sobreviventes de acidente vascular cerebral e hoje acredito que temos muito a ensinar. Toda história de sobrevivência tem muito para contar.

Dar visibilidade aos sobreviventes de AVC tornou-se um propósito para mim, porque, a meu ver, esta é uma das formas de readquirimos liberdade e sermos verdadeiramente respeitados pelo que somos. Este é o meu ideal, esta é a minha luta! Há três anos (exatamente no ano dos meus acidentes) tive a ideia de fazer um videodocumentário sobre a vida de sobreviventes de AVC, porque seria egoísmo demais deixar histórias tão lindas de ressignificação trancafiadas na minha falha memória. Após muitos revezes, consegui apoio da Fundação Cultural de Curitiba e verba do mecenato suficiente para concretizar esse sonho, que será estruturado a partir deste segundo semestre. O nome do projeto é OLHARES, e você já deve imaginar o porquê desse título. E justamente por estar produzindo este projeto, escreverei um pouco menos a partir do próximo mês, mas ainda continuarei por aqui.

Alguns dirão que foi sorte; nunca foi. Outros falarão que foi fácil; tudo foi difícil. Toda essa força que me leva a lutar por respeito e liberdade da minha comunidade pode ser resumida em uma simples palavra: amor. Se hoje estou aqui é porque fui resgatada por pessoas incríveis que assim como eu passaram por um ou mais AVCs. Bato palmas para todas elas, mas sou auspiciosa, quero que todo o mundo as aplauda também. Gratidão, muita gratidão.

Sobre o/a autor/a

Compartilhe:

Leia também

Melhor jornal de Curitiba

Assine e apoie

Assinantes recebem nossa newsletter exclusiva

Rolar para cima