Turbulências

Foi a primeira vez que passei por essa sensação dentro de um avião, mas não foi a minha primeira turbulência na vida, já passei por várias, e depois do AVC tive que enfrentar uma sucessão delas

Medo, descontrole e confusão mental. Quem passou por essa vida sem nunca ter “tremido na base”, não viveu. Enquanto alguns a encaram como uma viagem tranquila, outros persistem enfrentando tempestades. Nós, sobreviventes de AVC, lidamos com a segunda opção.

A primeira vez que viajei de avião foi depois dos trinta anos. Antes, nunca tinha oportunidade de tal aventura, seja por falta de dinheiro ou de necessidade. Porém, acho que o real motivo sempre foi o medo do desconhecido. E, para piorar, já tinha assistido a um monte de filmes de tragedias aéreas, e isso sempre me limitou diante da oportunidade de utilizar o aeroporto.

Eis que um dia o dinheiro e a necessidade apareceram na minha vida; fui visitar um grande amigo que estava morando em um lugar muito distante e precisei enfrentar o meu medo. Sabe, não foi tão ruim como eu imaginava, mas na volta tive que encarar uma turbulência, e isso me assustou. Eu tinha perdido o controle de tudo a vários metros de altura, sem nada sob os meus pés.

Foi a primeira vez que passei por essa sensação dentro de um avião, mas não foi a minha primeira turbulência na vida, já passei por várias, e depois do AVC tive que enfrentar uma sucessão delas. Ainda tenho. A primeira vez que “perdi o chão” foi quando o meu avô materno morreu. Como fui criada por ele, a sensação que tive foi de perder um pai: me senti insegura, sozinha no mundo, e sentindo todo o peso dele nas minhas costas. Acho que foi nessa época que me tornei adulta, pois percebi que se algo de ruim me acontecesse, eu teria que arcar com todas as consequências.

Quando sobrevivemos a um ou mais AVCs lidamos muito com essa sensação de desastre, principalmente porque passamos não por uma, mas por uma série de turbulências. É “eita” atrás de “eita”!  Primeiro perdemos o controle do corpo, depois do cotidiano e, por fim, de nossas relações. É uma tragédia individual que destrói tudo a nossa volta. E o que sentimos é um misto de ansiedade, angústia e desespero.

Um cérebro machucado não dói em si, mas as consequências de tê-lo lesionado são comparáveis a um filme de terror, daqueles que levamos vários sustos e não temos dimensão de como a próxima cena vai se configurar. Só sabemos que provavelmente é muito ruim, e isso já assusta. Para ser exata, no primeiro ano de sobrevivência, essa sensação tenebrosa é a nossa única certeza. Por isso vamos tanto ao pronto-socorro nesse período. O nosso corpo começa a apresentar um monte de características ruins, como inchaços, dores, tonturas e fadiga extrema, e como estamos desacostumados com isso, corremos para pedir ajuda. Quem não faria o mesmo? Só que depois de um tempo, a gente se acostuma com esses desconfortos, assim como um piloto aéreo deve se costumar com as turbulências diárias de seu trabalho.

Infelizmente, tremer sem controle faz parte da rotina de todo AVCista, trememos muito por diversos motivos. Para começar, antes mesmo de se levantar da cama é preciso fazer um verdadeiro “plano de voo”: fixar a força na perna dominante e planejar onde podemos nos segurar caso ocorra um desequilíbrio. Tudo isso é bem chato no começo, mas, com o tempo, a gente “pega o jeito”. Pelo menos, eu “peguei”.

Outra tremedeira irritante são os espasmos. No meu primeiro ano de recuperação, eu tinha muitos espasmos que me assustavam. Atualmente tenho poucas crises, de vez em quando na mão esquerda (justamente onde tenho mais espasticidade). Então, procuro me alongar e beber muita água durante o dia. A partir do momento em que descobri que me hidratar me livrava dos espasmos, me tornei uma pessoa sedenta. Mas, mesmo assim, tem dias que eles reaparecem e meus movimentos ficam idosos.

Porém, não são exatamente esses tipos de turbulências que me amedrontam, mas as famosas convulsões. Apesar de serem possíveis em qualquer cérebro lesionado, elas são mais comuns em que teve AVC hemorrágico, pois o sangue desmancha uma parte do cérebro, deixando um buraco preenchido por líquor. (Aliás, este é o motivo de eu me chamar de “desmiolada”: meu primeiro acidente vascular cerebral foi hemorrágico). E nesta “terra de ninguém” neurológica, as sinapses cerebrais ficam um pouco fora de controle. Sem um trajeto estabelecido, a conexão cerebral, que funciona como se fosse uma rede elétrica, pode desviar um “raio” para uma outra região e gerar uma intensa turbulência. É assim que convulsionamos. Vida de sobrevivente de AVC é como viajar no meio de uma tempestade.

Nunca tive uma convulsão consciente, sinceramente espero nunca ter. Sempre apaguei durante essas intercorrências, e apenas lembro de sentir um profundo medo antes, e depois sentir todas as minhas sequelas mais aguçadas. Apesar de acordar numa poça de suor não ser nada agradável, para mim, lidar novamente com o auge das minhas limitações é infinitamente pior.

Como convulsões podem aumentar o machucado do cérebro, elas são muito perigosas e devem ser evitadas com anticonvulsivantes e exames periódicos, dentre eles um chamado “eletroencefalograma” (que basicamente testa a capacidade do cérebro perante a estímulos). Trata-se de um exame rigoroso: se a gente não convulsiona, passa no teste. Outra medida alternativa muito utilizada na minha comunidade é o uso no canadibiol, que melhorou o dia a dia de muitas pessoas que convivem com o horror da epilepsia. Infelizmente, devido ao preconceito, não é fácil obtê-lo, porém (pelos depoimentos de quem o utiliza) seus resultados são satisfatórios.

Quando descobri que tenho tendência a convulsões, fiquei com medo de sair de casa, porém, meu estilo de vida não permite essa opção. Assim como o piloto de avião, preciso me aventurar todos os dias para ganhar o pão. E agora, com as minhas crises bem controladas, me sinto menos insegura. Como elas são leves, não interferem tanto no meu dia a dia, porém, infelizmente não deixaram de existir. A paisagem vista da janelinha nunca mais foi calma como antes. Se eu parar de tomar o medicamento, o tempo fecha. Sei disso por causa dos resultados dos exames e porque quando me sinto extremamente nervosa ou exausta, me vem aquela sensação de medo, que é o sinal de alarme das minhas crises epilépticas. Então, paro tudo o que estou fazendo, me deito de lado e respiro fundo. Este método deu certo para mim e sei que funciona porque eu nunca mais “apaguei”, e toda essa sensação de desconforto se dissipa quando eu volto a ficar calma. Ah, e logo depois aviso o meu neurologista.

Vida de epiléptica não é das mais contagiantes, mas é a vida que tenho. Assim como todo mundo, preciso lidar com certas turbulências durante o meu trajeto, e apesar dos medos, das inseguranças e dos desconfortos, acredito que a viagem é bela e não quero chegar descabelada no desembarque. Meu objetivo é tentar me tranquilizar diante das tempestades que virão (sejam elas oriundas da vida ou do meu “desmiolo”) e ter consciência que a existência delas simplesmente faz parte do caminho. Todos nós somos viajantes e sobreviventes da nossa história, e lidar com turbulências faz parte do aprendizado.

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