Sem palavras

É muito comum afásicos serem hostilizados quando tentam se comunicar com alguém, pois ao demonstrar que possuem dificuldade em falar, eles são automaticamente ignorados até no contato visual

Estamos em junho, o mês da conscientização da afasia: um distúrbio neurológico que afeta a linguagem. Para afásicos, falar, compreender, ler e escrever são grandes desafios que dificultam a sua socialização e o modo como se veem no mundo. Afinal, poucas coisas são tão limitantes quanto ficar sem voz.

Na vida pós-AVC nos deparamos com vários tipos de sequelas: algumas bem individuais e pouco perceptíveis, outras monstruosas, capazes de abalar estruturas essenciais da vida, como a comunicação. Uma das mais tenebrosas consequências de um derrame é a afasia: um distúrbio neurológico bem complicado que afeta a linguagem.

De modo geral, todo sobrevivente de AVC tem algum traço de afasia, de menor ou maior grau, dependendo do local da lesão. Quando esta acontece do lado direito do cérebro, seus traços são sutis, porém, quando a lesão ocorre no lado esquerdo, a situação é mais complicada, já que é nele que ficam as áreas da linguagem: a área de Broca (responsável pela fala) e a área de Wernicke (responsável pela compreensão). Na prática, a pessoa acorda e simplesmente não consegue mais falar. Nada.

Apesar de não conseguir falar, o intelecto do sobrevivente continua funcionando, de modo que ele consegue pensar nas frases que deseja expressar, mas na hora de articulá-las, sai apenas um grunhido ou uma palavra aleatória. Isso acontece porque justamente os neurônios responsáveis pela conexão entre o pensamento e a ação de falar foram destruídos; é como se cortassem o cabo que liga o seu Wi-fi à tomada, fazendo com que a internet pare de funcionar.

Assim como outras lesões cerebrais, a afasia requer tratamento (nesse caso, o fonoaudiológico). Para voltar a falar, o caminho é árduo e pouco convidativo: começa com o be-a-bá fonético e silábico, passa pela construção de palavras e frases e termina com a estruturação do diálogo. Tudo isso em períodos indeterminados (depende de pessoa para pessoa, de lesão para lesão). Alguns fazem o tratamento por meses, outros por anos.

Se a afasia causa toda essa destruição no cérebro, no lado emocional e social o afásico enfrenta um abismo. Como poucas pessoas não sabem lidar com esse distúrbio, ele acaba sendo muito isolado do convívio social, tanto por parte de seus amigos, como da sociedade em geral: fica muito difícil paquerar, trocar ideias e pedir um café na esquina sem conseguir falar. Outro problema é que, quando ficam sem voz, outras pessoas passam a falar por eles, fazendo com que fiquem apáticos e com a autoestima lá embaixo, perdendo seus desejos, valores e a vontade de planejar o futuro. Resumindo: ser afásico é sofrer um relacionamento abusivo com a sociedade.

É muito comum afásicos serem hostilizados quando tentam se comunicar com alguém, pois ao demonstrar que possuem dificuldade em falar, eles são automaticamente ignorados até no contato visual. Afásico não é surdo, nem mudo; ele não sabe Libras (aliás, por causa do derrame, uma de suas mãos é de difícil mobilidade). Eles não têm déficit mental, e percebem tudo o que está acontecendo em sua volta, inclusive chacotas.

Para amenizar essa terrível repulsa social, as sociedades de Fonoaudiologia determinaram que todo mês de junho é o mês da conscientização da afasia. Durante o mês inteiro acontecem vários eventos e posts comunicativos sobre a disfunção, com o intuito de informar a população, dar visibilidade à luta dos afásicos e ensinar métodos para se comunicar com ele.

Uma das principais lições é ter paciência e não falar por ele. Lembre-se: o afásico é inteligente, ele vai procurar meios de te passar a mensagem, e isso pode acontecer por meio de expressões, tons de voz, imagens ou palavras-chave. Por exemplo: para um afásico te contar que teve um derrame, apenas vai falar “AVC”. Sinceramente, precisa mais do que isso?

Outros traços de afasia são a repetição de “palavras-vícios” que são ditas de modo inconsciente pelo sobrevivente em diferentes situações (a minha era “faculdade”), mudança no sotaque e dificuldade em falar frases ou sentenças complexas. Tudo isso são sinais de luta contra diversos graus de afasia: são as nossas cicatrizes linguísticas oriundas da linguagem perdida e recém recuperada. Hoje, tendo consciência disso, acho esses traços muitos belos, dignos de aplausos. Espero que, a partir de agora, você os ache também.

PS:  Para quem quiser saber mais sobre o dia a dia de um afásico, indico as páginas @avc.vida.que.segue e @millasilva (ambas no Instagram), respectivamente da Marisol Martinez e da Camila Silva. As duas mostram com muito amor e bom humor suas rotinas diárias em que driblam a afasia e outras sequelas do derrame.


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