Quebrando o gelo

Frio! Eu sei que você é bem mais velho do que eu. Pelo que sei, você se faz presente desde os primórdios do nosso planeta, então não vou pedir para você “pegar leve” neste ano

O inverno é o período do ano em que os sobreviventes de AVC e pacientes de outras mazelas neurológicas mais sentem as consequências das lesões, também é a época em que mais infartos e derrames acontecem. Desde o meu acidente, penso em maneiras de sobreviver ao frio: algumas lógicas, outras nem tanto (como uma carta meio desmiolada).

E aí, frio? Tudo firmeza? Sei que nunca fomos muito próximos, mas desde que morri e voltei, prometi a mim mesma dar uma segunda chance às minhas principais desavenças e, com absoluta certeza, você é uma delas. Então, resolvi escrever esta carta para “quebrar o gelo” entre nós, aproveitando que de gelo você entende. Sinto, e confirmei nos noticiários, que neste ano você está com a corda toda. E juro que, por mais que tente, é difícil não dar aquela reclamada básica pela sua presença. Por favor, não me leve a mal, é que mudei muito desde os meus acidentes.

Agora, assim que você aparece, sinto dor, tanto na cabeça como no meu lado lesionado. Este desconforto, chamado pelos médicos de dor neuropática, às vezes surge como formigamentos, pontadas e agulhadas. Obviamente elas não são muito agradáveis, pois como aparentemente meu corpo está o mesmo, na mesma hora em que reclamo delas sei que serei chamada de manhosa por alguém.

De alguns anos para cá, percebi que não sou a única que sofre de dores crônicas – somos milhares nesse país topical: pacientes de fibromialgia, esclerose múltipla, de AVC, e de pessoas com problemas circulatórios e neurológicos. Sei até de pessoas que mudaram completamente suas vidas para fugir do rigoroso inverno Sul/Sudeste e hoje passam essa temporada em uma praia do nosso Nordeste. Não os julgo, confesso que também tenho essa vontade.

Além das dores crônicas, você me traz algumas psicológicas: sempre que o frio vem eu me lembro do meu acidente, que aconteceu numa noite muito fria. Pouca gente sabe, mas no inverno, o risco de AVC e infarto aumentam, já que as temperaturas mais frias podem causar o estreitamento das artérias, e consequentemente, alterações como pressão alta e diminuição do fluxo de sangue. Eu já imaginava que você fosse de algum modo responsável por isso já que, além de mim, a maioria dos meus amigos dos grupos de apoio fazem aniversário de renascimento no meio do ano.

Porém, o que mais me incomoda não são essas dores, mas a sensação de que a rigidez muscular do meu lado lesionado aumentou. Desde o AVC, sofro de um distúrbio, chamado espasticidade, que dificulta o controle muscular do meu lado esquerdo, me deixando um pouco torta e com movimentos limitados. Luto diariamente para a diminuição desses sintomas, e até sinto que obtenho considerável êxito no calor, mas agora – com sua chegada – toda essa evolução foi para o espaço, e tenho a terrível sensação de que regredi no meu tratamento fisioterápico.

Tá, também não serei injusta. Há pouco tempo descobri que você não é o responsável por isso, mas o fato de eu ter me tornado mais sedentária e ficar mais tempo encolhida. Mas, poxa, quem não fica encolhida quando sente frio? Ninguém pode me julgar, não é mesmo? Mas, entendi o recado: manter os exercícios durante o inverno. Estou tentando seguir essa regra, mesmo tendo que lidar com os pés e as orelhas geladas no início da atividade.

Também é importante manter a dieta menos calórica, porque quanto menos gordura no sangue, mais chances de ele circular com facilidade, e consequentemente, menos chances de ter outro derrame (Deus me livre!). Tudo isso é fácil de falar, mas é difícil se conter em frente a uma mesa repleta de pinhão, curau, paçoca e outros quitutes das festas juninas e julinas. Não sei o que é mais tentador: festa junina ou festa de criança. Nesses casos, é melhor já preparar uma desculpa para faltar na festa de aniversário daquele seu afilhado que nasceu nessa temporada, ou já chegar lá com o bucho cheio de comida natural. (Esta é uma estratégia que utilizo para não me acabar nos cachorros-quentes).

Todavia, estou confiante de que passarei mais de boa por você nesse ano, pois resolvi me entreter com vários sabores de chás para tentar me manter hidratada e aquecida durante os dias. Assim, elimino dois fatores que agravam minhas lesões neurológicas de uma vez só. E mesmo indo mais ao banheiro, tento não reclamar muito de sua presença gélida. Só quando saio do banho, porque não tem como não reclamar de você nessa hora.

Frio! Eu sei que você é bem mais velho do que eu. Pelo que sei, você se faz presente desde os primórdios do nosso planeta, então não vou pedir para você “pegar leve” neste ano (por mais que eu queira). Como você pode saber, por meio desta carta, estou tentando me adaptar (assim como tento me adaptar à minha nova vida e ao meu novo corpo). Não é fácil se adaptar, porque sempre tenho a sensação de que antes era melhor. Mas nem tudo era. Assim como as estações do ano, tudo precisa mudar constantemente na vida. E sou otimista: sempre acredito que depois do inverno, chega a primavera. Porém, se não for pedir muito, não chegue subitamente. Deixe os equipamentos meteorológicos te detectarem a tempo de nos prepararmos! Seria de grande ajuda!

Um aceno de longe, com uma das mãos enluvadas (a lesionada, que não deixa nenhuma luva vestir, está guardada no bolso do casaco).


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