Prova Real

A impressão que eu tinha era de que o “tico e o teco não estavam se falando muito bem” e então, para não me apavorar, comecei a concordar com tudo o que me falavam e a repetir a última frase que as pessoas diziam

Já ouviu aquela história que podem tirar tudo de você, menos o conhecimento? Quem acredita nessa máxima, com certeza nunca contou com a possibilidade de a pessoa em questão sofrer um AVC e perder a sua capacidade cognitiva.

Não sei bem ao certo, mas suponho que perdi a minha capacidade cognitiva no meu primeiro AVC (o hemorrágico), como uma consequência da hidrocefalia. Penso assim, porque logo após que acordei tive muitos delírios que me confundiam em relação à minha identidade. Eu reconhecia as poucas visitas que recebia na UTI, interagia com elas, mas não tinha certeza se tudo aquilo era real ou não, porque, para mim, os meus delírios eram mais reais do que aquela “realidade”. Deve ter sido nesta época em que comecei a me expressar em francês (uma língua que comecei a estudar na minha primeira faculdade) e todo mundo achou interessante, engraçado (e até que é mesmo inusitado uma pessoa sofrer um derrame e voltar falando um pouco de francês), só que os meus delírios eram nessa língua, e este era o real motivo pelo qual eu estava bem apegada a ela.

Com o segundo AVC, acredito que as coisas pioraram, mas o foco estava no fato de eu ter sobrevivido e estar tagarelando (com algumas conjunções erradas e palavras estranhas), porém, no geral, eu estava “ok” e fui liberada para casa. Só que, na verdade, eu não estava realmente entendendo tudo o que estava acontecendo. A impressão que eu tinha era de que o “tico e o teco não estavam se falando muito bem” e então, para não me apavorar, comecei a concordar com tudo o que me falavam e a repetir a última frase que as pessoas diziam. Incrivelmente, essa tática funciona muito bem e as pessoas até tendem a gostar de você, porém não é uma atitude muito sincera.

Na época, eu tinha recém-saído do hospital e acreditava que tudo iria melhorar com o tempo. Realmente muita coisa melhorou, mas outras não, como por exemplo: eu ainda falava muitas expressões em francês, praticamente não tinha memória de curto prazo e não sabia mais contar. As minhas compras eram feitas pelo meu cartão do banco cuja senha estava colada em uma etiqueta (extremamente perigoso, mas era o recurso que eu tinha naquele tempo) e eu só identificava dinheiro pelas cores das notas, porque os números em si não tinham o menor significado para mim.

Para voltar a ler e escrever em português, eu utilizei o mesmo processo apreendido nas minhas aulas de idiomas (traduzindo e estruturando pequenas sequências de palavras). Desde o meu retorno ao lar, eu só ouvia, lia e escrevia em francês porque era a única língua com a qual eu me identificava. Quando fazia essas ações em português, ficava ansiosa e insegura, como se “algo estivesse errado” e começava a chorar do nada. A impressão que tinha era de que estava num país estrangeiro, pois tudo o que falava, me expressava era de “forma errada”. Conversei isso na terapia, e a psicóloga me incentivou a escrever pequenos textos do que eu sentia em português. Este exercício deu certo e, até hoje, a escrita é a minha melhor forma de comunicação.

Apesar das vitórias na expressão escrita, os outros problemas cognitivos ainda persistiam ao ponto de chamarem a atenção do meu neurologista. Acredito que foi numa consulta após uma crise convulsiva que ele percebeu que em minha linguagem oral não havia somente fragmentos da língua francesa, mas de outras coisas, e isso era preocupante. Foi a partir de então que ele começou a aplicar alguns testes cognitivos, e eu ia mal em todos. Eu não me lembrava de sequências de palavras simples ou de como identificar imagens; sabia somar e multiplicar, mas tinha dificuldade para diminuir e não sabia mais dividir. Ao final de um dos testes, ele me mostrou um lápis e pediu para eu nomear aquele objeto. Entrei em desespero. O único nome que me vinha à cabeça era na “língua errada”, e eu não sabia mais o nome daquele objeto na “língua certa”. Ele pediu para eu falar o que vinha à minha mente, e eu quase chorando, disse: Le crayon.

A indicação foi que eu procurasse uma neuropsicóloga para fazer um tratamento cognitivo, mas naquela época eu não tinha dinheiro o suficiente para isso, ainda estava me recuperando do baque financeiro que o AVC traz. Infelizmente só consegui começar esse tratamento alguns meses depois, com uma profissional indicada que aceitou me ajudar recebendo apenas o que eu tinha conseguido economizar.

Naquela época eu já estava emocionalmente muito abalada porque tinha recém sido diagnosticada com deficiência mental por um outro médico devido aos meus problemas cognitivos, e estava com medo de ser interditada, ou de nunca mais voltar a trabalhar e me sustentar. E como qualquer pessoa desesperada, contei a ela tudo: dos delírios, do francês, e de como enganava as pessoas concordando com tudo. Era tudo ou nada: ou sairia dali com a minha intelectualidade estabilizada ou aceitaria de vez o terrível diagnóstico imposto a mim.

Começamos a terapia e descobrimos que na minha linguagem não havia apenas fragmentos de francês, mas de outras quatro línguas: italiano, alemão, espanhol e inglês. Foram todas as línguas que estudei, e que gostava de estudar em aplicativos. Uma das possíveis explicações é que a hidrocefalia tenha danificado a minha linguagem materna, e que alguns espaços danificados foram “preenchidos” por esses fragmentos de línguas estrangeiras na minha cabeça. (Acredito que eu tenha dito ao meu neurologista a expressão Bitte langsam ao ele me examinar, porque é algo que eu falo sem perceber quando me sinto acuada).

Estava tudo na minha cabeça, só que embaralhado, e não tinha como eu desembaralhar sozinha com o cérebro naquele estado. Com os cálculos e com a memória foi muito mais difícil: toda vez que eu tento dividir, minha cabeça tende a fazer matriz (pois é, eu não sei o porquê, mas pode ser por causa do desenho dos pauzinhos), e por isso, para fazer qualquer divisão no papel, eu preciso fazer a operação de multiplicação ao lado: a prova real. Por enquanto, é o único jeito em que me sinto segura em dividir. Na identificação dos números também vou para o alemão, por exemplo: para mim o 7 é sieben, e mesmo se o Papa disser outro nome, eu não acredito. Por isso eu preciso de mais tempo com qualquer menção numérica, já que na minha cabeça, eu preciso ter tempo para traduzir, fazer o cálculo e só depois responder. Treino esse lance com contas numéricas todos os dias, fazendo sudoku para melhorar o meu score e me readaptar cada vez melhor na sociedade. E tenho certeza de que um dia vou chegar lá.

Todavia, para que eu definitivamente reconquistasse minha liberdade cognitiva, era necessário um grande teste: o de QI. Como professora e pedagoga, nunca fui muito fã desse tipo de teste, mas precisava de “provas reais” para contestar o diagnóstico de deficiência mental. Era minha vida acadêmica e profissional que estava em jogo e precisava arriscar. Olha, foi mais difícil do que imaginava. Foram uns quatro dias e, em dois deles, cheguei em casa insegura porque tinha errado tal questão. Até que o resultado saiu e ele foi muito positivo, foi o início de vários laudos que finalmente atestaram a minha capacidade cognitiva. Desmiolada, sim, porém, mentalmente ativa.

Apesar deste pesadelo ter acabado, não tem como esquecer de como fui julgada e mal interpretada enquanto estava sofrendo sequelas cognitivas. E não tem como questionar até que ponto os testes cognitivos podem avaliar os danos neurológicos e intelectuais das pessoas. Já que, embora o teste de QI tenha me aberto as portas para o meu retorno às rédeas da minha vida, foi um breve teste que me diagnosticou como deficiente mental, algo que acredito que nunca tenha sido.

Minha reabilitação cognitiva é uma das maiores vitórias da minha vida, sinto muito orgulho de como meu cérebro se salvou e de como lutei por ele nesses longos meses pós-AVC. Também sou imensamente grata aos maravilhosos profissionais que passaram pelo meu caminho, e que sutilmente foram percebendo que debaixo de tantos “nãos”, ainda havia resquícios do que um dia foi a Camila e sempre me incentivaram a lutar por eles. A cada consulta me sinto menos confusa e noto que as conversas fluem melhor, percebo nos olhos deles aquele brilho de orgulho e me sinto a melhor paciente o mundo. Talvez até eles saibam melhor do que eu todo o percurso neural que o meu cérebro fez para chegar aonde ele está. Cérebro tem dessas coisas, é uma caixinha de surpresas.

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