Ponto de conexão

O coma é um estado de inconsciência que pode ser causado por danos temporários ou permanentes das funções cerebrais. Não parece que uma pessoa em coma está lutando, mas ela está. Enquanto ela aparentemente dorme, no seu mundo de delírios está acontecendo muita coisa

Sobreviver a um AVC é uma viagem para novas experiências. E entre a antiga e a nova vida, muitos de nós passamos por um período de transição, onde nada é tangível, problemático e mundano: o coma.

Sempre gostei de viajar, e assim que tive oportunidade, iniciei um hábito aventureiro de ir para um lugar em que eu não conhecia nada e nem ninguém. A ideia era sentir a real sensação do local e começar uma história do zero nele. Logo depois do meu acidente, antes de retornar à consciência, passei por uma experiência semelhante a uma viagem. Fui para um lugar vazio e diferente, em que eu não tinha história, nem bagagem. Um lugar só meu. Um mundo de delírios e sonhos que eu desbravava enquanto dormia profundamente numa cama de hospital.

Seria audacioso de minha parte dizer que todo mundo que tem um acidente vascular cerebral entra em coma. Não posso afirmar isso com certeza, só sei que muitos artigos científicos dizem que a probabilidade de se entrar em estado de coma após um AVC é grande, e que muitos dos meus amigos sobreviventes passaram por este momento, inclusive eu.

Para mim, o coma se iniciou como um lugar branco, extremamente branco. E dentro dele havia passagens para vários mundos inusitados, alguns deles eram formados pela minha psique, e outros se estruturavam pelas informações escutadas pelo meu corpo imóvel. Durante meu passeio, eu transitava entre vários lugares, sendo que o caminho entre eles era aquela sensação branca, que hoje, chamo de ponto de conexão.

O coma é um estado de inconsciência que pode ser causado por danos temporários ou permanentes das funções cerebrais. Não parece que uma pessoa em coma está lutando, mas ela está. Enquanto ela aparentemente dorme, no seu mundo de delírios está acontecendo muita coisa. Um de meus atuais amigos, após a cirurgia para interromper o seu AVC hemorrágico, se viu entre dois anjos que discutiam se ele iria ser encaminhado para o além ou não. Impetuoso, meu amigo ganhou forças para interromper a conversa e barganhar ao seu favor. Como tinha um filho muito pequeno, ele pediu mais tempo para ver o seu filho crescer. A força de seu pedido foi tão grande, que ele convenceu os seres celestiais e acordou.

Muitos poucos têm memória de suas viagens do coma. Para começar, sua duração não tem um tempo definido: alguns ficam dias, outros meses. A impressão que tenho é de que ficamos em uma espécie de terminal esperando saber em qual transporte devemos entrar. E quando acordamos, simplesmente podemos esquecer esse “perrengue” da viagem, porque ela foi apenas uma etapa, pequenina em comparação com a toda a história. Também acho que muita gente esquece desse momento porque ele é traumático. Estar entre a vida e a morte não é a melhor das sensações. Até o mais corajoso dos sobreviventes tem seus receios.

Porém, com toda certeza, quem mais sofre na nossa ausência é quem está nos esperando voltar. É um momento delicado para os nossos amigos e familiares, já que a única certeza é a incerteza dos próximos momentos. São eles que lidam diariamente com o luto e a ansiedade, sem nada que possam fazer, apenas serem pacientes e esperar, e, se possível, conversar com quem está dormindo.

Muitos sobreviventes que passaram pelo coma relatam se lembrar das conversas que tiveram com seus entes queridos neste momento. No meu caso aconteceu algo que até hoje acho interessante. No tempo em que estava inconsciente, um cantor célebre, cujo um de seus sucessos falava de uma tal de Jeniffer, sofreu um acidente aéreo. Ninguém que me visitava era fã dele, então acredito que essa notícia chegou aos meus ouvidos por meio da televisão da UTI ou pelas conversas do pessoal da técnica de enfermagem. Mesmo eu não o conhecendo, meus pensamentos me levaram para o alto de uma colina, onde eu procurava um cantor e sua amada Jeniffer. Pelo jeito, durante o coma, toda informação que escutamos se torna válida, e pode se transformar num novo roteiro de viagem.

Devo ter ficado um bom tempo profundamente adormecida, pois nesse meio tempo, lembro de ter feito muitas coisas: além de esperar no terminal, fui para uma batalha da Idade Média, visitei o meu velório, andei pelas ruas de Curitiba e assombrei o hospital que estava internada (Buuu!). Era como se dentro de um grande sonho havia milhares de pequenos sonhos intercalados.

Para onde vamos quando estamos entre a vida e a morte é um recurso muito utilizado nos filmes de ficção, em que, muitas vezes, as personagens vão para uma praia ou casa, onde encontram pessoas já falecidas, ou até mesmo Deus, e refletem sobre a vida. Infelizmente não tive tamanha sorte. Se pudesse, escolheria reencontrar o meu avô materno que sempre foi tão amável comigo, e que coincidentemente também teve AVC. Porém, apesar de não podermos planejar para onde vamos, os diferentes e inúmeros lugares por onde passei, é onde inconscientemente eu mais gostaria de estar, dentro da minha cabeça.

Por incrível que pareça, o coma é um lugar tranquilo, em que não existem problemas graves, nem brigas, nem boletos. Talvez porque o verdadeiro sentido da vida vai muito além dessas coisas chatas e passageiras. Os acordados é que cismam em se focar nelas justamente para se esquecerem de que os verdadeiros passageiros somos todos nós. No coma, não sentimos dor, mágoa ou raiva porque esses sentimentos são pequenos, mundanos. Para onde vamos, encontramos apenas o que realmente importa: paz, amor e fé.

Nesse ponto de conexão branco em que vamos quando estamos absortos de consciência, não existe um bonde certo ou errado para se pegar, porque todos são genuinamente certos. A gente vai para onde deve ir. Nele não existe escolha, apenas uma parada para tomar um café e conferir a bagagem. Alguns de nós pegam um determinado trem e voltam para essa vida barulhenta e cheia de “picuinhas” e a encontram totalmente fora dos trilhos. Outros vão para outro lugar, ou como eu gosto de pensar, se expandem infinitamente para todos a quem sentem afeto. Na viagem da vida, tudo o que a gente leva são as nossas experiências, e são justamente elas que se transformam em ensinamentos e memórias daqueles que queremos o bem.

É comum termos a ideia de que, quando nascemos, recebemos um passaporte em branco, mas não é bem assim que acho que acontece. Apesar de inúmeros carimbos que ganhamos ao percorrer o nosso caminho, sempre existirão folhas em branco. Tanto para quem vai, como para quem volta, será um recomeço.

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