O sangrento

Eu estava esquisita, tinha bagunçado a casa inteira, como se tivesse caído e levantado em vários lugares, tinha vomitado em tudo e não falava coisa com coisa. Confusa, agressiva e arredia: com certeza não estava nos meus melhores dias

Doloroso, cruel e mortal: o AVC hemorrágico é caracterizado pela ruptura de um vaso sanguíneo no cérebro e pela destruição do órgão pelo próprio sangue. Foi o meu segundo AVC e o primeiro em que sobrevivi, já que o transitório havia sido apenas um aviso. O segundo ato da trágica ópera da minha quase morte.

Terça-feira, 14 de maio de 2019. Cheguei em casa por volta das 20 horas, exausta e suportando uma dor de cabeça por quatro dias. Era dia da festa de aniversário de uma amiga, e como estava indisposta, liguei para parabenizá-la e dizer que não iria ao seu encontro por causa da dor de cabeça. “Ainda está doendo?” Como ela tinha me levado ao hospital alguns dias antes devido ao AVC transitório, erroneamente diagnosticado como provável meningite, combinamos de eu ligar caso a dor de cabeça piorasse.

Fiz um chá e coloquei dois analgésicos na mesa, e antes de tomá-los, a dor se intensificou absurdamente, como se fosse uma intensa pressão na cabeça, sobrecarregando a minha nuca. Aquilo definitivamente não era normal. Peguei o celular e mandei mensagem para o último contato do aplicativo de mensagens: justamente o grupo da organização do aniversário. Disse: “Ajuda! Ajuda! E o meu endereço de casa”. Apaguei todas as luzes e me deitei no sofá. Não me lembro de mais nada.

Uma das meninas que estava a caminho do aniversário ouviu minha mensagem no grupo e estranhou, já que era minha amiga de longa data e sabia que eu não era de mandar mensagens desse tipo, mas como estava dirigindo, decidiu chegar até a festa para então tentar entrar em contato comigo. Fez isso durante todo o tempo em que esteve lá e, como eu não retornava, resolveu voltar mais cedo e passar no meu endereço, acreditando que eu já estivesse dormindo. Pediu para o porteiro interfonar no meu apartamento; não atendi. Me ligou novamente; não atendi. Subiu com o porteiro e bateu na porta da minha casa; sem resposta. Começou a gritar e chutar a porta na tentativa de arrombá-la, até que ela se abriu e eu apareci no escuro, nua e suja. Ela entrou e fechou a porta.

Eu estava esquisita, tinha bagunçado a casa inteira, como se tivesse caído e levantado em vários lugares, tinha vomitado em tudo e não falava coisa com coisa. Confusa, agressiva e arredia: com certeza não estava nos meus melhores dias. Minha amiga tentou me acalmar e me vestir para me levar ao hospital, e nisso percebeu que eu estava tendo uma convulsão, e que logo depois comecei a vomitar e a ficar confusa novamente: era um ciclo de destruição neurológica. Desesperada, ela chamou o SAMU. Após alguns minutos, o Serviço de Atendimento Móvel de Urgência veio e me encontrou babando e agressiva, com a fala mole. E como suspeitaram que eu estivesse sofrendo uma overdose, foram embora.

O SAMU se recusa a tratar suspeitos de overdose (não acho isso certo), só que eu não estava drogava, mas sofrendo um AVC hemorrágico, e não fizeram nenhum teste para comprovar isso. Em menos de cinco dias fui condenada à morte por não receber ajuda de equipes médicas, por estas suspeitarem que meu caso estava relacionado à embriaguez ou overdose, sendo que nessas duas vezes eu estava sofrendo AVCs: primeiro um transitório e depois um hemorrágico. Com certeza tem algo errado nisso, algo que precisa ser mudado.

Por sorte, minha amiga não acreditou no diagnóstico do SAMU, e entre uma convulsão e outra, resolveu me levar ao hospital em que fui atendida e liberada quatro dias antes pela intensa dor de cabeça e perda de movimentos, porque “agora não poderia ser nada”. Chegando no hall do prédio, o porteiro ajudou a me carregar e, segundo ele, sussurrei que “algo muito ruim estava acontecendo”.

Cheguei inconsciente no hospital, e nesse instante minha sorte mudou, porque quem estava de plantão desta vez era o neurocirurgião que salvou a minha vida: o Doutor Leonardo. Ele foi o único que me olhou e percebeu que não era excesso de bebida, não era overdose, não era meningite, não era carência, não era “mimimi”: era AVC e do tipo hemorrágico. Só que assim que me colocaram na tomografia, ele viu que a situação era bem mais delicada: tinha se passado muito tempo, o sangue já tinha se expandido por todo o cérebro e eu estava com hidrocefalia. Ele chamou a minha amiga, disse para ela chamar meus pais, que eu iria imediatamente para uma cirurgia em que tinha vinte por cento de chance de sobreviver, e que se tivesse essa sorte, não iria mais andar, comer ou falar.

O AVC hemorrágico acontece quando um vaso cerebral se rompe, fazendo o cérebro sangrar por dentro (hemorragia intracerebral) ou em volta (hemorragia subaracnóide). O problema é que o sangue é altamente tóxico fora das veias, ele literalmente destrói tudo o que encontra pela frente. Este é um dos motivos pelos quais o AVC hemorrágico é o que mais mata, enquanto o AVC isquêmico é o que deixa as piores sequelas. Ele também acomete pessoas jovens porque está relacionado a problemas nos vasos cerebrais como aneurismas e MAVs (Malformações Arteriovenosas Cerebrais), que geralmente se agravam antes de chegar à idade avançada.

Quando uma pessoa sofre um AVC hemorrágico, ela fica confusa, extremamente emocional, tem acessos de vômitos, sente a pior dor de cabeça da vida e, às vezes, até perde o controle do intestino. Muitos agem estranhamente, alguns chegam a ficar vagando sem rumo pelas ruas, entram em hotéis, deitam-se em banheiros públicos… O sangue da cabeça tira a noção do “eu”, faz com que a pessoa se abandone. É quando ela mais precisa de ajuda, é quando ela mais precisa do diagnóstico correto.

Lembra quando o neurocirurgião disse que eu tinha vinte por cento de chance de sobreviver na cirurgia? Quando ele abriu a minha cabeça, ele achou que tinha sido otimista demais ao falar isso. Como tinha se passado tempo demais, havia dano demais no cérebro e, para piorar, o aneurisma rompido estava na base no crânio, o obrigando a fazer uma manobra arriscada ao ponto de minha chance de sobrevivência passar para doze. Doze por cento. (Se hoje você me falar que eu tenho doze por cento de possibilidade de ganhar na loteria, pode ter certeza de que já estou lá apostando).

Incrivelmente sobrevivi à cirurgia, mas não sei por quanto tempo fiquei lutando pela vida. Sei que colocaram dois drenos na minha cabeça para tentar retirar todo o sangue tóxico, e que saiu muito sangue ao ponto de a própria equipe da UTI se espantar. No começo, eles ficaram um pouco tristes por verem uma moça naquela situação, entubada e vivendo à base de máquinas, mas não queriam se apegar a mim porque acreditavam que eu logo faleceria. Então não conversavam muito comigo, mas o tempo passava e eu continuava ali, com todo aquele sangue saindo, saindo.

Mesmo cada vez mais fraca, mais franzina, espantosamente sobrevivia a uma cirurgia complicada, a um AVC hemorrágico, à demora de mais de quatro horas em ser atendida, à hidrocefalia, à perda de litros de sangue, ao coma, à negligência do SAMU, às incertezas da vida. Até que o pessoal da UTI foi se acostumando comigo e aprendendo o meu nome. Mas eu nunca respondia, só dormia enquanto o sangue do meu cérebro ainda saia pelo dreno. Até que um dia acordei em um lugar branco, desmiolada e dolorida, estranhando tanta gente sorridente e desconhecida que estranhamente sabia o meu nome.

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