O poder da intuição

À medida em que fui dando o devido valor às minhas vontades, fui as inserindo nas minhas atividades fisioterápicas

Ao nos depararmos com o corpo imobilizado pós-AVC, temos a sensação de que a vida acabou. Então, precisamos fazer fisioterapia para estimular a neuroplasticidade e recuperar os movimentos. Todavia, não são apenas exercícios que vão fazer o nosso corpo voltar a funcionar, mas o nosso cérebro. E a única pessoa que conhece bem este órgão é o paciente.

Sempre fui péssima em esportes. Sabe aquela pessoa que era a última a ser escolhida para os jogos nas aulas de Educação Física? Tá falando com ela. Apesar disso, sempre fui apaixonada por basquete e até que tinha boa mira, era veloz e sabia roubar a bola no ar. Porém, devido ao meu baixo desempenho nos outros esportes, nunca tinha oportunidade de ser escolhida para jogar, ainda mais porque, na minha escola, basquete sempre era o esporte selecionado no último bimestre, tempo em que minha fama de péssima esportista já tinha se consolidado ao longo do ano letivo.

Quem viveu a infância e pré-adolescência nos anos noventa deve se lembrar que houve uma moda de basquete norte-americano que contagiou meio mundo, inclusive eu, que assistia jogos, comprava camisetas e pôsteres que misturavam jogadores com desenhos animados. Eu também jogava basquete todos os dias no condomínio onde morava. Lá, as outras crianças gostavam de jogar comigo, mas eu queria mais: queria entrar no time da escola, onde nunca era escolhida, a não ser se ocupasse a única vaga disponível: a ala-esquerda.

No basquete, o armador ou ala é quem faz os dribles, passa as bolas, examina a defesa do time adversário e investe nos contra-ataques. Num time existem dois armadores, um para cada lado da quadra. E como todo mundo da minha turma era destro (inclusive eu), essa função nunca era suficientemente eficaz no lado esquerdo da quadra. Ou seja, se eu me tornasse boa nela, finalmente entraria no time principal. Quando percebi essa oportunidade, comecei a treinar todas as noites na quadra do meu condomínio pelo lado esquerdo da quadra. Era uma obsessão: simplesmente não aceitava mais ficar na posição direita. Era tudo ou nada: ou jogava nesta posição, ou simplesmente não jogava. Assim, comecei a usar muito a mão esquerda para roubar bolas, fazer cestas de três pontos e me ajudar a driblar, até que finalmente entrei no time da escola.

Muitas décadas depois, sofri dois AVCs do lado direito do cérebro, comprometendo todo o meu lado esquerdo. Apesar de o meu cognitivo ter sido o mais afetado, o lado motor também ficou muito comprometido, ao ponto de o meu braço ficar encurvado sobre o tronco. Nesses casos, a fisioterapia já começa no hospital, e como a mobilidade é zero, não é o paciente que mexe o lado paralisado, mas o fisioterapeuta. E não sei o porquê, nesses momentos eu pensava nos meus benditos jogos de basquete do Ensino Fundamental. Poderia pensar na filosofia existencial humana ou em tentar mexer o braço e a perna que estavam imóveis, mas não, o que me vinha à cabeça eram os dribles e as cestas de três pontos do meu tempo de escola.

Como eu tive danos cognitivos, esses tipos de pensamentos eram vistos como devaneios, até por mim, porque naquela época era tudo muito confuso. Porém, mais tarde, durante a fisioterapia na clínica, os mesmos pensamentos da quadra sempre vinham durante os exercícios que tentavam devolver a mobilidade do meu braço. Até que comentei isso com a fisioterapeuta, que passou a adaptar os exercícios às estratégias do jogo de basquete, primeiro com bexigas e depois com bolas. Incrivelmente deu certo, porque, de algum modo, o meu corpo se lembrava de como driblar e se mover pelo lado esquerdo, por mais que o meu cérebro tivesse perdido os neurônios responsáveis por essas ações nos meus acidentes vasculares cerebrais.

Tudo isso não aconteceu num passe de mágica, já que não há romantismo nenhum na reabilitação, mas essa mudança de estratégia fez com que a minha evolução crescesse substancialmente a olhos vistos, ao ponto de ninguém acreditar que um dia eu tinha sido condenada a uma vida acamada. E tudo isso aconteceu a partir do momento em que a intuição do meu cérebro foi ouvida, e assim, ele se tornou o protagonista da minha reabilitação.

Gosto de chamar essa “memória” ou “vontade” de “intuição” por dois motivos: muitos de nós sofremos lesões cognitivas no AVC (embora não sejamos todos) e nossa autoestima é profundamente abalada. Sério, não tem como ter autoconfiança depois de perder tudo de um segundo para outro, inclusive o domínio sobre o próprio corpo. Quando chegamos para o fisioterapeuta após sofrer um AVC, estamos desesperados, só queremos que ele nos devolva a nossa vida de volta. Isso é o que hoje chamo de “recuperação passiva”.

Só que a única pessoa que conhece a história do meu cérebro sou eu. Nenhum fisioterapeuta saberia que, mesmo sendo destra, eu já tinha treinado toda a minha motricidade esquerda para entrar num time escolar aos doze anos. Na verdade, até eu tinha me esquecido disso, menos o meu cérebro, que me lembrava a todo o instante do caminho que eu precisava estimular para fortalecer a minha neuroplasticidade, e que eu, por insegurança, teimava em não dar atenção, até o momento em que o meu braço começou a se soltar do tronco. Foi preciso este sinal para que eu me tocasse que quem mandava ali não era o fisioterapeuta, mas o meu cérebro. E, para eu me reabilitar, ele (o cérebro) precisaria ser ouvido: era necessária uma “recuperação ativa”.

À medida em que fui dando o devido valor às minhas vontades, fui as inserindo nas minhas atividades fisioterápicas, e o momento mais marcante da minha vida foi quando, com muito esforço, a terapeuta me colocou para me equilibrar na bicicleta ergométrica, simplesmente porque eu insistia em estar lá. Naquela época, não tinha força para pedalar, e o único exercício possível era eu me equilibrar no equipamento. Isso pode parecer nada para uma pessoa saudável, mas quem já sofreu um AVC sabe o quão difícil é essa tarefa, já que perdemos o equilíbrio mais básico. Foi nesse momento em que percebi que poderia voltar a ser independente. E foi o momento mais feliz da minha vida.

Colocar esse protagonismo em todos os outros setores da reabilitação não foi tão fácil, pois nem todos os profissionais estão dispostos a lidar com um tratamento individual, apenas os melhores e mais capacitados. Muitos médicos e terapeutas sequer olham na cara dos pacientes com lesão cerebral, se dirigindo apenas aos nossos acompanhantes, e devido a essa convenção, fui rejeitada por muitos especialistas até encontrar os profissionais que hoje chamo de aliados da minha recuperação, respectivamente: neurologista, psicóloga e neuropsicóloga. Apenas eles estiveram dispostos a acreditar nas “intuições” do meu cérebro machucado para auxiliá-lo no caminho da sua neuroplasticidade.

Hoje, minhas sequelas, apesar de existentes, são relativamente pouco aparentes para a maioria das pessoas, e acredito que isso é resultado de um longo processo de reabilitação em que meu cérebro foi ouvido tanto por mim como por profissionais extremamente competentes. E este é o motivo pelo qual eu seguramente indico para os sobreviventes acreditarem nas suas “intuições” e em profissionais que acreditem neles. Nessa vida, quem nos salva somos nós mesmos.

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