O dia em que fui Jerôme Monté

Eu tive muitos delírios na UTI. Em um, especificamente, fui um cavaleiro da baixa Idade Média

Eu tive muitos delírios na UTI. Em um, especificamente, fui um cavaleiro da baixa Idade Média. E este delírio era tão vívido, que durante meses pensei que a minha vida real fosse a dele, e que a vida da Camila fosse o verdadeiro delírio.

Era dia. Mais um dia de guerra. Eu e os outros cavaleiros andávamos pela mata para chegar até o castelo conquistado e matar os desertores e os adversários que tentavam escapar. A minha tarefa, a de limpeza, era de terminar o banho de sangue.

Geralmente os desertores eram jovens que se desapontavam com a realidade da linha de frente. Eram fáceis de pegar porque vinham ao nosso encontro. Não sabiam que a nossa ordem era a de matá-los, porque era preciso obedecer, dar o exemplo. Matar os adversários era o pior: ao contrário dos desertores, não mereciam o mesmo fim. Estavam cansados e com fome, eu também estava. Todos estávamos.

Já tinha lutado com dois; na última luta fui atingido do lado direito da cabeça. Fiquei tão zonzo que me apoiei em uma árvore. Sua casca grossa e um pouco quebradiça machucou meus dedos e de repente tive a impressão de que tudo estava morrendo ao meu redor. A cena era de total carnificina: os nossos meninos que não desistiram usaram a sua raiva para matar e empilhar os corpos dos outros meninos. Não gostava do que eu fazia, preferiria criar patos.

Minha cabeça doía. Tentei colocar a mão nela, mas não consegui porque o braço não se levantava. O enjoo era arrasador. Alguém percebeu que eu não estava bem: eu disse que estava. No chão e aos arredores só se viam sangue, cabeças e miolos. Apesar de estar acostumado com esta cena, aquilo tudo deixou a minha dor de cabeça ainda mais forte. “Preciso descansar. Não confio nos outros, mas preciso descansar” – pensei. Alinhei a minha coluna na árvore e coloquei a minha espada no lado esquerdo do meu corpo.

Fechei os olhos e procurei me concentrar no cheiro das folhas. Imaginei uma luz branca e duas garotas me olhando: uma tinha os cabelos morenos como os meus e a outra era bem loira. Estavam preocupadas e se referiam a mim como uma mulher. Sorri e uma delas, a loira, conversou comigo num tom angelical. Tentei me mexer e elas não deixaram. O sonho era bom, calmo. Queria continuar nele e conversei com a loira, que queria saber o que eu estava segurando. Era a espada.

Percebi que no sonho meu corpo era pequenino e estava envolto numa camisola clara. Elas estavam falando comigo pensando que eu era uma menina vestindo uma camisola. E fazia sentido, porque realmente havia uma menina ali. Eu podia escutá-la. Assim como a menina, eu estava muito cansado, e estava começando a pensar que deixaria a guerra de vez, e isso tudo me aliviava. Havia tubos em toda a parte e um barulho infernal vindo de uma caixinha. Não à toa a menina estava amedrontada; eu também estava. As moças gentis de repente foram embora. Ouvia apenas as pessoas de azul conversando como se eu e a menina não estivéssemos ali.

Levantei e deixei a menina dormindo. Fui até um pequeno galpão frio onde uma mulher com desenhos no braço olhava para outra caixa com imagens estranhas. Desta outra caixa saía um som dizendo que um menestrel morreu: fora lançado de uma catapulta de aço; seu corpo ainda não havia sido encontrado numa montanha. Nunca gostei de catapultas. Voar é para pássaros, não para homem. A menina riu e disse que gostava de voar.

Voltei para o primeiro galpão. Lá estava a menina imobilizada. A sua cabeça enfaixada, com um cano fino saindo de seu crânio. Exatamente no mesmo ponto onde sangrava a minha. Devia ser por isso que eu estava ali. Perguntei se a moça conhecia o homem que voou da catapulta de aço. Ela disse que não, e adormeceu.

Retornei à minha realidade. E então eu estava na torre. Meus companheiros tinham me trazido para cá onde o sol era forte. Não gostava de calor, mas a voz da garota dentro da minha cabeça dizia que ela gostava. Estranhei ainda poder ouvir a voz da garota do sonho. Perguntei da minha espada e a me devolveram. Fiquei furioso por a tirarem de mim, mas disseram que foi preciso, que o corte da minha cabeça havia sido profundo. O meu também, disse a garota, “disseram que eu tive um AVC”.

Estava enjoado. Havia muito sangue no meu rosto; o cabelo estava encharcado de sangue e estava tonto. Caí no chão e esticaram as minhas pernas. Chamaram um padre da aldeia próxima, a que tínhamos passado a noite anterior. Não gostava de padres, mas a garota do sonho estava me perturbando. Talvez ele pudesse a mandar embora, exorcizá-la. Eu sabia que ela estava morrendo. E eu também estava.

Me veio um sono profundo e estava de volta ao galpão branco, onde duas mulheres me olharam e sorriram. Uma era mais velha e parecida com a garota. Elas me falaram de algo chamado delírio. Disseram que eu não existia. Estava tão cansado que aceitei, sem falar nada. Aceitei para que eu pudesse deixar de existir e a menina pudesse renascer.


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