O céu não é o limite

Acredito que por meio da minha experiência com o AVC descobri que felicidade não é uma linha de chegada, muito menos um final de novela

Todo AVC é um divisor de águas na vida de um sobrevivente. E no meu caso, quando avalio o meu antes e o meu depois do acidente, considero a segunda parte mais feliz. Sim, é possível ser feliz depois de um AVC.

Há uns dois anos, definitivamente não estava nos meus melhores dias. Tinham se passado poucos meses após os meus acidentes e, já em casa, lutava para andar com o auxílio de uma bengala, falava uma língua que ninguém entendia e, para piorar, estava meio careca (com metade da minha cabeça raspada devido às cirurgias). Foi mais ou menos nesse tempo que procurei sobre AVC em uma rede social e encontrei o meu primeiro grupo de apoio. Dentro dele, havia vídeos de um cara sorridente que mostrava o seu dia a dia. A princípio, achei que ele não fosse AVCista porque era feliz. Depois descobri que ele também era sobrevivente e fiquei com raiva, porque enquanto ele sorria, eu chorava. Hoje eu sei que ele estava certo, e eu errada. Ainda bem.

Sobreviver e se recuperar de uma lesão cerebral é uma experiência solitária, mesmo se as pessoas não se afastassem. Acredito que, para se recuperar, o cérebro bagunça tudo, assim como quando tiramos todas as roupas do armário para arrumá-las de novo. Com os miolos desordenados fica difícil se conectar com o outro: falha a memória, falha a linguagem, falha a atenção e, quando você se esforça para dar conta, a fadiga é tanta que a gente dorme de repente, no meio de uma conversa. Na maior parte do tempo é só você tentando entender o que aconteceu dentro do seu mundinho: o que no começo é angustiante e só melhora quando você passa a se conhecer melhor.

Não me achava grande coisa antes do derrame. Se listasse as minhas características, faria um entulho de defeitos e diminuiria as minhas qualidades. Tinha autoestima baixa e me preocupava muito com a opinião dos outros, e talvez por isso fosse muito infeliz. Só que passar por uma experiência tão forte como um acidente vascular cerebral mexe muito com a gente, sendo que, se você não acreditar nas suas qualidades, não segue em frente.

Uma das minhas habilidades é a persistência. E ela se fez presente quando o médico me disse que eu não voltaria a andar. Mesmo com a metade do corpo mole, tinha certeza de que voltaria a andar, porque lutaria por isso todos os dias da minha nova vida. Foi aí que tive fé em mim pela primeira vez na vida, desde que me conheço por gente.

Durante a reabilitação é preciso utilizar algumas estratégias mentais para estimular as ações, uma delas é nos orientar verbalmente. Por exemplo: para andar, primeiro é preciso ordenar a perna direita para ela se movimentar (se esta for a sua perna dominante) e depois repetir o mesmo esquema com a esquerda. É assim que vamos iniciando os passos da nossa famosa marcha. Então, conheci meu lado mandão, ao ter que obedecer às minhas próprias ordens: para andar, abrir a boca, me virar na cama…. Como todos os movimentos físicos eram muito difíceis de serem realizados, procurava me lembrar de um momento bom assim que eu os completasse. Era como um bônus pela tarefa realizada. Nisso eu me descobri exigente e carinhosa. Também precisava me acalmar nos momentos de impulsividade e descontrole emocional (que são bem recorrentes em quem sofre lesão no cérebro), e ao controlar a respiração e cantarolar a minha música favorita (“La Vie en Rose”), descobri o óbvio das sessões de terapia: que só eu posso me trazer paz.

À medida que fui me recuperando, comecei a desafiar meus limites, tanto os impostos pela lesão como aqueles mais antigos (da minha história de antes do AVC), e nesse momento tive a ajuda de vários outros sobreviventes que, mesmo sem saber, estavam me impulsionando como aquele rapaz do começo do texto, que passei a admirar. E conectada aos grupos de apoio, os desafios se apresentavam quase que automaticamente: se eu visse um vídeo de alguém subindo uma escada sem apoio, eu colocava na minha cabeça que iria conseguir fazer isso também. Se alguém conseguisse se vestir sozinho, eu iria me empenhar até conseguir o mesmo, e assim por diante.

O mundo do AVC é cheio de desafios, mas repleto de pessoas que te incentivam a realizá-los. Avcista convive com limites, mas não acredita neles. E temos razão em não acreditar: na nossa comunidade temos casos de pessoas que eram acamadas e hoje dançam, de pessoas que após anos de mão imobilizada voltaram a mexê-la e de afásicos que fazem lives! Tudo isso não é milagre, é persistência. Não fazemos exercícios para cantar melhor, para entrar em forma ou por um determinado período: fazemos exercícios para a vida inteira. Não há folga, não há descanso: nossa rotina é digna de maratonista.

Acredito que por meio da minha experiência com o AVC descobri que felicidade não é uma linha de chegada, muito menos um final de novela. Ela se faz presente durante o processo em que saímos em busca dos nossos objetivos: que pode ser voltar a falar, ter uma carreira de sucesso ou formar uma família. Ela é composta daquela energia em que acreditamos em nós mesmos e desafiamos todos os medos de fracassar. Hoje me considero feliz não apenas por ter sobrevivido a dois AVCs, mas por ter reconquistado a minha capacidade de andar. E sou tão abençoada que revivo essa alegria toda a vez que recebo um vídeo de um sobrevivente se reabilitando. Cada novo passo dele é um novo passo meu também. Caminhamos juntos.

Nosso dia a dia é repleto de coragem e determinação. O verbo “desistir” não existe no nosso vocabulário, porque se fosse para desistir, teríamos morrido. Mesmo tendo sido desenganados pela medicina, sobrevivemos. E ás vezes a sensação é como se tivéssemos “voltado do zero”: somos todos crianças e adolescentes nesta “nova vida”. Para quem sobreviveu a uma lesão cerebral, mesmo diante das maiores dificuldades, não existe “fim da linha”, até o céu se tornou ilimitado.


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