O cérebro emocional

Com a minha experiência em sofrer dois acidentes vasculares cerebrais, eu aprendi que o cérebro não é tão logicamente estruturado como diziam os meus básicos livros de biologia

Dizem que um lado do nosso cérebro é dominado pela razão, enquanto o outro é dominado pela emoção. Só que razão e emoção não são opostas uma da outra, mas complementares. E sabe com quem eu aprendi isso? Com o meu cérebro machucado.

Nós aprendemos nas aulas de biologia, lá pela sétima série do Ensino Fundamental, que o cérebro tem um lado racional e outro emocional, especificamente que o lado direito é o da emoção, enquanto o lado esquerdo é o da razão. Eu não sei você, mas eu sempre aprendi a valorizar mais o lado racional das coisas porque o importante era tirar boas notas, passar em um bom curso de uma boa faculdade e ganhar muito dinheiro (Rsrs. Eu era bem boba mesmo), e achava que para conseguir isso o negócio era ser lógica: emoção só atrapalhava. Só que descobri que toda essa ideia é uma baita furada. 

Com a minha experiência em sofrer dois acidentes vasculares cerebrais, eu aprendi que o cérebro não é tão logicamente estruturado como diziam os meus básicos livros de biologia. Realmente ele é dividido nos lobos frontal, temporal, parietal e occipital e cada um deles tem as suas funções específicas, mas, de modo geral, ele funciona como um todo porque são muitos neurônios trabalhando, e todos eles são regidos pela razão e a emoção ao mesmo tempo.

E nada mais didático do que demonstrar essa teoria usando como exemplo o meu cérebro machucado de avcista. Vamos lá? Tudo começou na noite do dia 14 de maio de 2019, quando um aneurisma se rompeu na parte de baixo do meu crânio, enchendo-o completamente de sangue (o que em “mediquês” chamamos de hidrocefalia). Fui levada ao hospital e fizeram a primeira cirurgia onde estancaram o aneurisma e drenaram o sangue da minha cabeça. Era preciso tirar a maior quantidade de sangue possível porque o sangue é tóxico para o tecido cerebral. É claro que naquela altura o estrago já estava feito (já havia danos irreparáveis), mas retirar o sangue daria alguma chance de parte do meu tecido cerebral se manter vivo. Só que era muito sangue, ao ponto dos meus miolos incharem e espremerem uma artéria do cérebro (o que em “mediquês” se chama vaso espasmo) e nisso, nove dias depois do primeiro eu tive o meu segundo AVC. Resumindo, dessa “brincadeira” eu perdi quase um quarto do cérebro, especificamente nos lobos parietal e temporal do lado direito.  Talvez por isso meu prognóstico foi: não vai andar, falar e deglutir.

Só que o cérebro tem as suas “malandragens” para se recuperar. A mais incrível dela chama-se neuroplasticidade, que é quando um neurônio “vizinho” daquele que morreu assume a sua função, ou seja: ele “aprende” o que o neurônio finado fazia para manter o corpo funcionando (e é por isso que muitos de nós avcistas conseguimos nos recuperar). Só que o neurônio “aprendiz” não tem o dom para fazer aquele trabalho, e acaba tendo muita dificuldade em seu aprendizado (por isso que é tão difícil esse processo).

O nosso cérebro aprende pela emoção. Pode perceber que você consegue aprender com mais facilidade aquilo que te dá prazer. Com todo mundo acontece isso, sem exceção. Eu mesma já conheci um monte de gente que aprendeu inglês só para passar de fase num jogo de videogame ou que aprendeu uma matéria difícil na escola só para conquistar uma garota. O estímulo que rege a nossa aprendizagem é a felicidade.

E eu sempre fui insuportavelmente emotiva. Verdade mesmo: pode ser a “lua no signo de câncer” ou um estilo de vida, sei lá, mas se eu comer um brigadeiro instantemente me torno a pessoa mais feliz do mundo. E talvez aí esteja o segredo da minha neuroplasticidade ser surpreendente, pelo menos acredito que foi assim. Só que tudo isso não é apenas intrínseco, porque tive meus dias conturbados de recuperação (e foram bem difíceis), mas a minha grande “virada” foi quando fiz novas amizades nos grupos de apoio. O afeto dos meus novos amigos fez tanta diferença que consegui ter equilíbrio o suficiente para finalmente andar sem bengala.  

Situações como essas não acontecem só comigo. É possível ver a diferença na recuperação de quem é amado e de quem sofre abusos (há muitas famílias abusivas, não tem como ignorar isso).  E é exatamente por isso que ter apoio é tão importante. Quem sofre uma lesão cerebral fica muito frágil por dentro e por fora. Não temos controle das nossas razões e emoções porque o cérebro está todo “bagunçado”. Ficamos bem difíceis de lidar e é quando mais precisamos ser amados; é quando mais precisamos de terapia.

Ter razão é muito bom (é maravilhoso na verdade) porque parece que temos o controle de tudo, mas não é apenas de razão que é feita a vida. Porque é a tão subestimada emoção que nos dá resiliência, é ela que nos torna mais felizes e humanos. E se você é aquele tipo de pessoa que chora em filme, conversa com suas plantas ou com o seu cachorro e canta no chuveiro, tenho boas notícias: você é maravilhosamente forte e tem um cérebro incrível. Vai ficar tudo bem.


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