Inválidos

Também existe muita falácia a respeito da aposentadoria por invalidez, uma das mais difíceis de serem deferidas

No termo jurídico, invalidez é a uma incapacidade física ou mental permanente que impossibilita o exercício de uma determinada atividade. Na prática, essa palavra significa muito mais do que um mero exercício profissional, mas um modo de ver a vida. Só sobrevivendo a um acidente fatal para se ter uma ideia.

Sempre tive muita dificuldade em selecionar frutas e verduras nas gôndolas dos supermercados e das quitandas, mesmo antes do AVC:  nunca escolhi a fruta mais doce, muito menos o melhor tomate. Sempre fui muito dual: ou tudo estava muito bom ou muito ruim. Esse modo de ver as coisas com os óculos do ‘tudo ou nada”, tão comum em nossos tempos tão sombrios, me pegou desprevenida logo após o meu derrame, porque desde então venho sofrendo um processo de invalidação. Com a ruptura do aneurisma, automaticamente eu me tornei aquele tomate amassadinho que ninguém ousa levar para casa, e muito disso acontece devido a desinformação e ao preconceito.

Tudo começou quando, após a alta hospitalar, obtive o auxílio-doença de seis meses do INSS. Naquela época ouvi de muitas pessoas que eu estava “aproveitando a vida”, enquanto os outros levantavam cedo para trabalhar. Um absurdo, já que auxílios-doença não são férias renumeradas num spa. Muito pelo contrário: todo o processo de voltar a andar, recuperar o lado paralisado e lidar com todas as divergências do meu novo corpo era mais semelhante a um treinamento olímpico do que um ano sabático. Recuperar-se de um derrame, sobretudo nas primeiras semanas, é muito árduo: o corpo dói, a frustração vem, e, junto com ela, pensamentos catastróficos responsáveis por pesadas crises de ansiedade. Naqueles dias, se pudesse escolher entre continuar a reabilitação ou retornar a minha velha rotina de casa-trabalho-casa, com certeza escolheria a segunda opção, e fazendo horas-extras em todos os fins de semana com um sorriso no rosto.

Também existe muita falácia a respeito da aposentadoria por invalidez, uma das mais difíceis de serem deferidas. Nem todo AVCista é aposentado (eu não sou), e para consegui-la, é preciso comprovar perante o perito do INSS ser portador de uma lesão grave, incapacitante e irreversível. Só que nem todos os peritos são especialistas nas inúmeras sequelas de um AVC, ou não se empenham em considerá-las. Um amigo meu (que não vou identificar por respeito a ele), caminhoneiro e paciente de epilepsia pós-derrame, teve o seu pedido de aposentadoria indeferido, porque o perito – veja bem – achou super tranquilo um caminhoneiro voltar a exercer sua função tendo de duas as três crises convulsivas por dia. Afinal, quem não tem uma convulsãozinha no volante? (Ironia). Meu amigo, é claro, entrou com um recurso administrativo, e finalmente conseguiu se aposentar, porém, nesse processo, passou por muito medo de não conseguir sustentar sua família, o que, consequentemente, gerou-lhe mais crises convulsivas. Ou seja, aposentar-se por invalidez é um processo árduo, e nem sempre conquistado.

Além de casos como o mencionado, existe o outro lado da moeda: o de pessoas que foram aposentadas por invalidez muito novas e entraram em profunda depressão por se sentirem inúteis. O termo “inválido” corrói a alma, é como se a existência não fizesse mais sentido. Um inválido não produz, não cultiva, não constrói. E quando esse termo é definido para alguém de vinte, trinta anos, este não comemora, mas se sente incapacitado de viver e ser feliz. O tomatinho deixa de ser amassado e se torna ‘oficialmente estragado” na mente delas.

A invalidação vai além das paredes do Instituto Nacional do Seguro Nacional: é comum não acreditarem nas palavras de quem sofre uma lesão cerebral, como se a capacidade mental do sobrevivente estivesse totalmente deteriorada, o que não é verdade: a maioria dos sobreviventes de AVC e TCE são intelectualmente capazes. Assim, somos marginalizados apenas por termos sofrido um acidente, rejeição que nos torna cada vez mais vulneráveis e suscetíveis a males como isolamento extremo e relacionamentos abusivos.

Nada disso é novidade para ninguém. Está apenas embaixo de um pano. O preconceito social e laboral para com quem tem alguma doença mental (que apesar de ser diferente de doença neurológica são tratadas da mesma forma por muitos) é tão comum, que as pessoas tendem a escondê-las para não serem excluídas. Nossa sociedade marginaliza a doença ao ponto de encarar como “incapaz” quem as trata, e não quem as esconde. 

Só que não tem como esconder um AVC, um acidente automobilístico ou um coma. A partir do momento em que você sofre um, você se torna estigmatizado e recebe milhares de preconceitos até então inexistentes em sua cabeça. Desde que tive o meu cérebro machucado, sou vista ora como a “coitada” (que teve dois AVCs aos trinta e poucos anos), ora como a “guerreira” (que apesar do AVC segue a sua vida), e não quero ser nem uma coisa, nem outra, porque ambos os adjetivos me fundem aos meus acidentes, e acredito que sou muito mais do que eles. 

Mais difícil do que sobreviver a um AVC é sobreviver ao que vem depois dele. É difícil provar sua capacidade intelectual com cicatrizes na cabeça. É difícil se amar quando a admiração vem por você estar sendo feliz “mesmo estando assim”. É difícil se provar capaz quando todos dizem que você não o é. Sobreviver vai além do coração continuar batendo e a mente continuar funcionando: é ser resiliente a tudo o que nos cerca. É continuar vivendo sendo tudo, menos inválido.


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