Inacreditável

O café que frequento é o paraíso para pessoas com deficiência não aparente, porque como eles já me conhecem, não são mais ignorantes diante de PCDs com algumas peculiaridades

Como é que você me imagina? Deitada o dia inteiro com uma sonda no nariz? Já fui assim, mas hoje ando para lá e para cá (sem cadeira de rodas, andador ou bengala), faço um monte de coisas e sou pessoa com deficiência. Sim, isso mesmo. Hoje a minha deficiência é invisível, e isso faz com que ela erroneamente seja inacreditável.

Como todo mundo que sobreviveu a um AVC, considero-me uma pessoa diferente depois dos meus acidentes. Vira e mexe, me pego naqueles pensamentos “antes e depois” dos derrames, e vejo como a minha cabeça mudou em relação a situações que antes nem passavam pela minha cabeça até então não-desmiolada. Uma dessas questões é em relação às pessoas com deficiência (sim, esse é o jeito certo de se referir a nós, com o termo “pessoa” antes de “deficiência”).

Desde que acordei do meu primeiro coma, eu me tornei PCD. Só que, naquela época, a minha deficiência era a hemiplegia, que é a paralisação de metade do corpo (no meu caso, o lado esquerdo). É estranho porque a gente não dá tanto valor a movimentar os dois lados do corpo até perder a função de um deles. Para você ter noção, naquela época eu precisava de ajuda dos técnicos da UTI para me virar de um lado para o outro na cama, e assim evitar que surgissem escaras no meu corpo. A sensação era de que tinha me tornado uma panqueca, sendo virada de lá para cá. 

A hemiplegia é uma das sequelas mais comuns de AVC, sendo que o lado paralisado é oposto do lado da lesão cerebral. Mas, além dela, existe a paraplegia (paralisação dos membros inferiores) e a tetraplegia (paralisação do pescoço para baixo). Como nos casos de lesão cerebral existe a neuroplasticidade – que é quando um neurônio assume a função daquele que morreu – logo somos induzidos a começar a fisioterapia para recuperar ao máximo os movimentos perdidos. Parece mágica, mas aos poucos isso acontece. E assim, deixei de ser hemiplégica para ser hemiparética (hoje tenho dificuldade em mexer a metade do corpo lesionada). Enquanto a hemiplegia é aparente, já que a pessoa fica visivelmente acamada, a hemiparesia é uma deficiência não aparente, ou seja, a maioria das pessoas não consegue identificar logo de cara que tenho deficiência.

Deficiência não aparente? Ué, mas isso existe? Pois é, e como existe! Mas eu também não sabia disso na minha outra vida. Às vezes, acho que as pessoas que me leem acreditam que eu vivo acamada com uma enfermeira do meu lado. Sim, esse momento realmente aconteceu, mas graças à fisioterapia hoje sou completamente independente: passeio pela cidade, tomo banho, lavo louça… E quando descobrem da minha história ou que sou a “desmiolada”, imediatamente vejo a descrença no olhar do outro. “Mas você só manca”, “Você se recuperou totalmente, né? ”. Nem uma coisa, nem outra.

Para explicar melhor, vamos voltar no tempo. VRRR. Logo após os AVCs, meu cérebro ficou machucado, e sempre será, porque miolo não é fígado, ele não volta a crescer. É claro que, com a fisioterapia e a fonoaudiologia, os sintomas visíveis dessa lesão se amenizaram, mas eles não deixaram de existir. Por isso, hoje eu não tenho as mesmas condições de antes do acidente, e ainda preciso de pequenas ajudas no meu dia a dia.

Diariamente frequento um café que fica embaixo do meu prédio, e lá todos os funcionários sabem que eu tive AVC e já entendem bem mais as dificuldades. Por exemplo: eles me levam a bandeja do almoço porque sabem que eu não tenho força na mão esquerda para carregá-la, também abrem embalagens e desrosqueiam as garrafas pelo mesmo motivo. Ninguém tem pena de mim, só sabem que, por causa da lesão, fazer essas ações é complicado para mim, e então, são gentis. Também acontece outra situação específica: eles me avisam quando a minha roupa não combina com o tempo, porque como não tenho tanta sensibilidade do lado esquerdo do corpo, não percebo as drásticas variações de temperatura e corro o risco de ficar febril ou hipotérmica.

O café que frequento é o paraíso para pessoas com deficiência não aparente, porque como eles já me conhecem, não são mais ignorantes diante de PCDs com algumas peculiaridades. Mas no resto do mundo não é assim: a todo momento me questionam quando utilizo o banheiro preferencial ou fico na fila específica, como se eu fosse uma mentirosa. Este constrangimento é tão recorrente que já tento sair de casa com o laudo médico no bolso. E mesmo assim, já fui questionada a respeito da veracidade deste documento. (Sim, eu falsificaria exames, “compraria” um médico e correria o risco de responder por um processo penal apenas para usar o banheiro PCD, só na fértil imaginação alheia!).

Pessoas com hemiparesia, assim como eu, têm dificuldade em manter o equilíbrio, por isso precisam de apoio para sentar-se no assento sanitário e correm o risco de cair de repente se ficarem muito tempo em pé numa fila, já que a perna não se sustenta durante muito tempo. Tombos são tão recorrentes para nós que até me adaptei a um modo de “cair elegantemente”, que é me apoiar na parede para me segurar antes de dar com a cara no chão. Antes de me adaptar a esse método, caía com força mesmo, como se tivesse levado uma rasteira da vida.

Hemiparesia não é a única deficiência invisível. Existem várias, como: autismo, epilepsia, ostomia e fibromialgia. E mesmo se a pessoa com deficiência não tiver especificamente problema com o equilíbrio (assim como eu), ela tem o direito de utilizar os espaços destinados a PCDs. Como o nosso dia a dia é mais desafiador do que o de qualquer pessoa sem deficiência, podemos, sim, utilizar toda a forma de acessibilidade. Ao contrário do que muita gente pensa, não estamos “passando a perna” em ninguém, é a falta de informação que faz com que qualquer ambiente fora de nossa casa se torne cada vez mais hostil para quem é diferente. Na dúvida, antes de ficar reclamando ou enxotando as pessoas que estão ocupando os lugares PCDs, pergunte a elas se precisam de ajuda. Seja como eu, passe constrangimento elegantemente.

Acredito que um dos meus maiores desafios pós-lesão encefálica foi lidar com o olhar do outro. Se antes, quando usava bengala e tinha o braço contraído, era vista com piedade, hoje, quando peço ajuda, tenho que lidar com a descrença de que realmente dela preciso. Não sou a única: nós, sobreviventes, geralmente somos chamados de “folgados” por pedir ajuda e nos sentimos culpados perante isso, porque como adquirimos uma deficiência, ainda não estamos adaptados a ela e desconhecemos os nossos direitos. Esse sentimento faz com que a maioria evite a todo custo sair de casa, e torna a sociedade cada vez menor para todos.

Pessoas com deficiência têm personalidades e corpos diversos, assim como as pessoas sem deficiência. Deficiência não faz de ninguém melhor ou pior. E ao invés de dar uma de São Tomé e somente aceitar como deficiência aquela que se consegue ver, o ideal seria tentar conhecer melhor o outro antes de simplesmente julgá-lo. Quem sabe, assim, um dia poderemos dizer que a sociedade é realmente para todos.

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