Eu, PCD

Aos poucos vou me adaptando à sociedade, tanto ao usar o banheiro específico como ao chamar uma pessoa de preconceituosa quando está sendo rude comigo devido à minha limitação

Um acidente vascular cerebral leva a uma lesão muito violenta no órgão que comanda todo o nosso organismo. Muitos de nós nos recuperamos graças à neuroplasticidade, mas algumas cicatrizes permanecem. As minhas são peculiares e invisíveis, mas suficientes para me tornar uma pessoa com deficiência.

Era sábado. Encontrei uma amiga em frente a um famoso espaço de música erudita daqui de Curitiba para assistir a um concerto de graça. Depois fomos para um bar de que eu gostava muito e estava tendo uma apresentação de música nordestina. Bebemos, dançamos e fomos para outro bar, onde jogamos sinuca. Na volta para casa passamos numa padaria e compramos pão de queijo fresquinho. Essa foi a última vez em que me lembro de ter saído de casa no meu corpo antigo.

Pode parecer meio extravagante, mas meus finais de semana eram assim: cheios de compromissos. Eu sempre fui enérgica, trabalhei e estudei. Não fiz uma, mas cinco línguas diferentes, todas com bolsa. Não fiz uma, mas três faculdades, duas com bolsa. E estava na minha terceira pós quando tive os AVCs. Era uma profissional multifuncional e tinha ideias atrás de outras, sendo que me adaptava fácil a diversas circunstâncias. Mas tudo mudou numa madrugada fria em que tive um AVC transitório, dias depois um hemorrágico, e, por fim, um isquêmico: todos em maio de 2019.

Depois da alta do hospital foram dias estranhos. A impressão que me dava era de que tinha ficado doente, mas que logo sararia. Acho que todos os meus amigos também tinham essa mesma impressão porque recuperei o andar e a fala até que rapidamente. Tinha alguns problemas no caminhar, na conjugação verbo-nominal (maldito francês!), na memória e a mão esquerda fechada, mas o que era tudo isso para quem sobreviveu a duas cirurgias cerebrais? Com certeza eu recuperaria tudo de novo. Mas não foi bem assim.

Aos poucos fui percebendo que o “buraco era mais embaixo”, na dificuldade de amarrar o sapato, em manusear talheres, em escrever e calcular. Pode parecer inocente hoje, mas na época do hospital ninguém me disse que os derrames tinham me tornado uma pessoa com deficiência, então não tinha assimilado minhas limitações como permanentes.

Eu me lembro de terem comentado sobre a minha visão, mas não tinha me tocado que não enxergava na região periférica esquerda. Era tudo muito básico na minha cabeça: se enxergava com o olho esquerdo, não tinha ficado parcialmente cega. E o resto iria recuperar: tudo ao seu tempo. Mas não foi bem assim. Para me vestir foi difícil, para tomar banho sem passar mal (minha pressão varia muito durante o banho) era uma missão impossível, e para escrever foi uma luta (para você ter uma ideia, só consegui fazer a letra L cursiva com quase dez meses após os acidentes, antes eu desenhava um alpha). Também teve um tempo em que escrevia os verbos por último na frase, porque confundia a escrita portuguesa com a estrutura linguística alemã.

Minha lesão me afetou cognitivamente, e como sabia muita coisa, as memórias se misturavam com facilidade. Lembro de um almoço com a família de um amigo em que falei regras gramaticais em tom de conversa informal. E não sabia o porquê de estar dizendo aquilo tão fora de contexto. Mas a informação simplesmente reaparecia na minha mente do nada. Minha memória, antes invejável, ficou péssima, ao ponto de não me lembrar coisas básicas, como se tinha passado ou não manteiga no pão. As pessoas próximas a mim não estavam preparadas para essas limitações persistentes. A ficha não caía, nem para mim, tampouco para elas, que não compreendiam a minha dificuldade em ir para a rua sozinha.

Eu me perdia com muita facilidade, andava com dificuldade e não sabia contar dinheiro. Supermercado era muito complicado porque além de tudo tenho dificuldade para identificar objetos (um transtorno chamado “agnosia”). Então tentava comprar alguma coisa e acabava comprando outra. No começo não falava sobre isso porque realmente achava que iria melhorar, que era apenas uma fase. Mas não era. E depois, quando finalmente comecei a relatar, comecei a ser chamada de “carente”, “preguiçosa” e “dependente”.

Sim, a mesma guria descrita no começo do texto foi adjetivada de “preguiçosa”. Ao chorar pelas dificuldades da minha nova vida virei a “carente” e por pedir ajuda era chamada de “dependente”. Então parei de falar, parei de pedir ajuda, porque ser tratada assim era pior do que qualquer coisa. E assim, mediante as dificuldades, fui preferindo ficar em casa ao invés de sair para a rua. A hostilidade não veio apenas das pessoas próximas cansadas de ouvir as minhas reclamações, mas também de desconhecidos: por andar devagar, por me confundir com coisas básicas; toda impaciência alheia me causava imensa dor. Até que um dia, por uma questão contratual da empresa onde trabalho, fui enviada para um exame mais específico e fui diagnosticada com deficiência múltipla. Para mim foi um alívio.

O problema não era eu, não era preguiçosa, ingrata, dependente… Só estava tentando me adaptar como podia em um novo corpo, não tinha nada errado comigo. A constatação de PCD veio para mim como uma chave para uma nova vida. Com ela comecei a me informar, aprender sobre direitos e capacitismo (o preconceito com pessoas com deficiência) e a compreender minhas tonturas e desequilíbrios.

Aos poucos vou me adaptando à sociedade, tanto ao usar o banheiro específico como ao chamar uma pessoa de preconceituosa quando está sendo rude comigo devido à minha limitação. Estou me empoderando, me acolhendo e finalmente tendo orgulho da minha trajetória. Claro que cada caso é um caso, e o meu jeito de lidar com isso tudo é diferente do de outra pessoa que nasceu ou não com uma deficiência. Cada caso é único, assim como cada história.

Hoje dou mais valor às minhas vitórias, como conseguir desenhar o L, não me confundir com números e dar uma parada estratégica para me esticar e recuperar o fôlego durante o dia. Hoje tenho orgulho do meu mancar, pois representa a minha sobrevivência e não a minha limitação. E desejo que cada sobrevivente sinta isso um dia: é libertador. E espero estar cada dia melhor me aceitando como sou, por dentro e por fora.


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