Dor nos nervos

Quando machucamos o dedinho do pé, nossos nervos capilares imediatamente enviam o aviso de que algo foi machucado naquela região do corpo até o nosso cérebro por meio do Sistema Nervoso Central

Seria tudo tão mais fácil se a dor não existisse. Então, a gente finge que ela não está lá: bebe álcool, toma um comprimido, esconde ela debaixo do tapete, aponta o dedo para o outro ao invés de escutá-lo. Muitas pessoas que tiveram AVC sofrem de dores crônicas; muitas que não tiveram também.

Quem nunca bateu o dedo mindinho no cantinho de um móvel no meio da madrugada? Sem enxergar aquele obstáculo, o tropeço foi inevitável e resultou numa forte dor seguida de um belo palavrão. Quem mandou ter a ousadia de tentar se aventurar no escuro? Uma batida assim não é das mais graves ao nosso corpo, mas o desconforto é tanto, ao ponto de ser inesquecível. Talvez porque nós não vemos como todo o processo acontece, só o sentimos.

Quando machucamos o dedinho do pé, nossos nervos capilares imediatamente enviam o aviso de que algo foi machucado naquela região do corpo até o nosso cérebro por meio do Sistema Nervoso Central. Esse aviso vem em forma de uma dor aguda (Ai!) para que a gente faça algo a respeito dela: acender a luz, proteger o pé e cuidar da ferida. Praticamente todo o processo de alerta do corpo humano funciona na base da dor, menos o cérebro. Por ironia do destino, quando o cérebro é machucado, ele não dói, e para avisar que algo está errado, ele entra em colapso: a pessoa pode alucinar, convulsionar ou, simplesmente, uma parte do seu corpo abruptamente para de funcionar.

Ao ser machucado e perder alguns neurônios devido a alguma doença ou a um Acidente Vascular Cerebral, o cérebro pode ficar “confuso” com a ausência dessa parte fisiológica e enviar sinais de uma dor peculiar para o paciente, a fim de avisá-lo de que algo está errado. E esta dor não é de longe comparável à batida no dedo mindinho. Ela é muito pior, já que se apresenta na sensação de formigamentos, queimaduras, agulhadas e/ou esmagamentos de uma parte do corpo (geralmente correspondente à região do cérebro lesionada).

Não existem palavras para definir a tortura de sentir esse tipo de dor extremamente forte que surge sem razão aparente. A sensação que dá é de quase insanidade mental mesmo, já que a gente sente a perna queimar, pede ajuda, olha e ela está lá: normal. Eu sentia muito a sensação de agulhada na perna esquerda, e era quase como um empalamento. Mas, o pior era a sensação de esmagamento no ombro esquerdo. Lembro que tive que improvisar uma tipoia e tomava vários comprimidos de relaxantes musculares por dia. Nada adiantava, a dor persistia.

Essas dores começaram algumas semanas depois da minha alta hospitalar. Antes disso, eu estava relativamente bem, mas com esses torturantes episódios eu comecei a me preocupar e pensei que talvez tudo isso fosse o sinal de mais um AVC. Chamei por socorro, amigos me levaram nos prontos-socorros, onde eu era tratada com desdém. Dias depois, tive a sensação de que ninguém mais acreditava nas minhas reclamações: achavam que eu estava carente, querendo atenção. E essa descrença me machucou mais do que “ombro esmagado”, porque eu nunca fui de reclamar à toa, não é um traço de minha personalidade. A minha dor, assim como a maioria das dores, era invisível, mas existia. Ela era real e, assim como o meu cérebro, eu estava perdida.

Até que chegou o dia da consulta ao neurologista e ele estranhou a minha tipoia improvisada e o meu semblante de sofrimento. Relatei das dores, e ele ordenou que eu dispensasse todos os analgésicos imediatamente, pois além de ineficazes para o meu caso, o excesso deles poderia prejudicar gravemente a minha saúde. E então me explicou que eu estava sofrendo de um tipo de dor neuropática, muito comum de surgir semanas após um AVC, e que deve ser tratada com medicamentos e tratamentos específicos.

Se alguém que me leu sentiu pesar pelas minhas dores relatadas, saiba que tive sorte, muita sorte: porque elas foram leves. Como cada caso é um caso, tem sobrevivente que sente dor ao mínimo toque, em que sentem até as gotículas do chuveiro entrarem em sua pele como agulhas. Infelizmente não estou exagerando, lidar com dor é muito delicado, até para especialistas.

Este é um assunto muito recorrente em nossos grupos de apoio. Muitos de nós tentamos alongamentos, chás de sementes de mostarda e diversos tratamentos fisioterápicos e neurológicos para lidar com nossas dores crônicas. Trata-se de mais uma das sequelas gigantes que tentamos enfrentar juntos. Eu, que estou bem longe de ser super-heroína, na época parti para os remédios neurológicos que praticamente “desligavam” o meu Sistema Nervoso Central e, consequentemente, deixavam o meu corpo mais pesado e me causavam muito sono.

Foi o que pude fazer na época porque não aguentava ser torturada todos os dias. E assim, além de “carente”, comecei a ouvir que era “preguiçosa”. Passei a me sentir julgada por olhares e comentários próximos e me preocupar com o futuro. Como iria voltar a trabalhar, viver, me socializar, tomando um remédio tão pesado? Mas se o parasse de tomar, a dor voltaria. Virar Bela Adormecida ou sofredora permanente? Que dúvida cruel.

Com a liberação do INSS para o meu retorno ao trabalho, optei pelo desmame do remédio, com o acompanhamento do neurologista. Não digo que todo o processo foi fácil, pois nada é fácil pós-AVC, mas como estava consciente e preparada, lidar com o retorno das dores foi mais fácil. Agora todas as luzes estavam acesas.

Hoje, as minhas dores são suportáveis. Quando as sinto, alongo o braço ou a perna. Ah, e adquiri uma mania esquisita: sempre passo protetor solar nas partes em que sinto estarem queimadas, mesmo em pleno inverno de Curitiba. Tiques de um cérebro machucado, deixemos eles assim.

Mesmo tendo plena consciência que todas essas minhas dores eram reais, ainda me dói toda a descrença que sofri na época em que elas eram mais agudas. A falta de empatia é a pior de todas as dores crônicas, porque me senti abandonada quando estava sendo torturada, esmagada, queimada na fogueira… Isso me gerou uma mágoa em que serão necessários anos de terapia para dissipar. Não sou a única. Vira e mexe, nos grupos, alguém aparece desesperado reclamando de dor, e quando ouve que esse tipo de sequela é comum, a primeira reação é de alívio: “Graças, não estou louco.” A maioria das dores é invisível. Não existe ser humano que não tenha passado por uma dor ao arrebentar uma parte do corpo, ao ter perdido um importante amor ou ao viver um grande luto. Todo mundo sente ou já sentiu dor. Há dores intensas e inestimáveis no mundo, não tem por que duvidar da dor alheia. Acredito que, no nosso caso, muito desse descaso vem do cansaço das inúmeras sequelas pós-AVC, já que a luta não termina quando a gente sobrevive, é um longo caminho da reabilitação. E não são apenas nossos cuidadores que se cansam, a gente também cansa, só não podemos desistir. Não nos é dada essa opção! Além de todos os desafios, temos que lidar com todas as nossas dores crônicas, sejam elas decorrentes ou não do AVC. Boas doses de empatia as aliviariam. Todos os médicos a recomendam: aliviariam muitos sofrimentos no mundo.

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