Dois cafés

O café é quente como a nova amizade e amargo como foi o trecho em que nossas vidas se cruzaram

Em um mundo onde um simples encontro geralmente pode ser nada, no meu mundo é tudo. Lidar com os desafios de uma vida pós-AVC faz a gente ver o mundo e o outro de forma mais intensa, em que o simples pode ser muito.

Banho tomado, roupas bem selecionadas e o melhor perfume. Apesar da dificuldade em me arrumar, tentei fazer tudo da melhor maneira possível para ficar impecável, já que era um dia de um encontro muito especial. Ainda não conhecia a pessoa com quem iria conversar pessoalmente, a conheci por meio da indicação de uma das minhas tias. Conversamos durante algumas semanas virtualmente, nos adicionamos nas redes sociais, até que, finalmente, tivemos a coragem e marcamos nosso primeiro encontro, como eu digo: tête-a tête

Para me sentir mais à vontade, sugeri um café, porque particularmente gosto muito do ambiente íntimo que um café com pão oferece, coisa de descendente de italianos. Nesse caso, marcamos na própria casa dela, então resolvi passar numa padaria e comprar alguns quitutes para não chegar lá de mãos abanando. 

Peguei o endereço e fui até lá de uber. Em frente à casa, um homem bem-vestido já me esperava. Ele gentilmente me ajudou a descer do carro e a segurar os pacotes já amassados pela minha mão esquerda. Ao contrário da maioria das pessoas, ele não se assustou por eu segurar as coisas desajeitadamente e me auxiliou a subir as pequenas escadas da porta principal da casa, já consciente da minha dificuldade em mover uma das pernas. Porém, não é ele que tinha ido conhecer, mas a sua esposa, que me esperava na sala de estar.

Ao me aproximar do ambiente, tentei averiguar se não estava descabelada e se a roupa não estava torta (depois do acidente, tenho tendência a desalinhar o lado esquerdo quando eu me visto).  Assim que a vi, sentada e gentil, a achei simplesmente fantástica, linda! Porque aquilo era o encontro de duas sobreviventes de AVC, e isso, por si só, é uma vitória. A gente se abraçou (este evento aconteceu antes da pandemia), procurei o lugar mais confortável para me sentar e o primeiro assunto foi o maior trauma de nossas vidas. Sim, na lata! Não há superficialidades para quem sobreviveu a um acidente vascular cerebral, só quem passa por um tem ideia de como é assustador ver sua vida perder todo o sentido em menos de um segundo.

O café é quente como a nova amizade e amargo como foi o trecho em que nossas vidas se cruzaram. A gente se ouve atentamente, mesmo já conhecendo o enredo da história, porque sabemos que para quem conta, muitas vezes aquela narração é a reconstrução mental do que ainda não foi entendido pelo corpo ou pela alma. Todo processo de AVC é muito doloroso. É necessário muito afeto, paciência e empatia para ouvir e falar. Talvez seja por isso que nos ajudamos tanto quando nos conhecemos: a maioria de nós sabe o que o outro está sentindo porque passou ou ainda está passando pelo mesmo.

Detalhes do AVC foram contados, falamos de sentimentos, dos nossos vazios… Inevitavelmente lágrimas vieram, e aproveitei para averiguar se o lado esquerdo do meu queixo não estava sujo, já que naquele tempo eu tinha sialorreia (babava um pouquinho no lado esquerdo na boca).  A conversa também contou com alguns trechos animados, porque sofrer de uma lesão cerebral tem lá seus momentos inusitados (como quando eu levei para o meu neurologista o raio-X do meu gato ao invés da minha última tomografia, porque não consegui identificar a diferença entre os dois envelopes).

Também falamos de remédios, tratamentos, e dificuldades, muitas dificuldades. Continuar vivendo após um AVC é muito difícil, mas como tudo na vida, tem seus momentos de alegria: encontros como esses são uma delas. Encontros de almas. Nesse momento, me senti um pouco privilegiada ao me comparar com a minha vida antes do acidente. Não me recordo de vivenciar momentos tão genuínos assim na minha “vida anterior”. As conversas e o meu modo de ver a vida se tornaram mais verdadeiros justamente depois da minha experiência pós-AVCs. A impressão que tive é que tudo começou a fazer mais sentido após eles. Encontrar outros sobreviventes foi onde encontrei o suporte necessário para entender que era possível (e necessário) continuar vivendo depois de passar por uma tragédia pessoal, porém isso apenas acontece se ambos estiverem aceitado o que aconteceu, senão, o efeito pode ser reverso.

Como eu tive os meus acidentes em 2019, tive um breve período de pré-pandemia para conhecer alguns sobreviventes, algo que pretendo voltar a fazer (com todos os cuidados necessários) assim que a situação permitir. Não há algo que mais une do que quase morrer em um acidente vascular cerebral, conviver com as sequelas e sentir a terrível solidão pós-AVC. Mesmo com tantas diferenças de ideologias, credos, escolaridade, planos, times de futebol e partido político (lembrando que logo estaremos no Brasil de 2022), nada disso precisa ser levado em conta se o foco for dar e receber suporte emocional.

Parece até que o AVC nos tira a “casca”, porque a impressão que dá é que a única coisa que nos resta é a essência, já que o físico e cognitivo estão tão fragilizados. É essa essência que precisa ser fortificada, e para mim isso aconteceu por meio da reestruturação dos meus valores humanos, e o caminho da amizade foi o mais bonito para que isso viesse à tona. A pandemia passou e todas as minhas amizades com sobreviventes permaneceram, talvez porque saibamos o valor de uma amizade, já que perdemos muitas depois de sofrer um acidente vascular cerebral. Também acredito que nossas relações tendem a ser mais sólidas porque já nos tocamos da efemeridade da vida. Quem morre percebe isso. Também sabemos que coisas importantes podem ser construídas ao acaso ou em momentos simples e memoráveis, como tomar café numa tarde chuvosa.

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