Do outro lado do espelho

Em um toque de mágica (que mais parece uma maldição), o AVC vem e nos “tira a casca”, transformando em menos de um minuto nosso corpo em uma massa frágil e pouco atraente

Sempre usei o espelho todos os dias, antes e depois do AVC. Só que depois do acidente a minha relação com ele mudou: adquiri outro ponto de vista.

“Espelho, espelho meu!”. Esta frase tão célebre logo nos remete a uma das antagonistas mais clássicas dos contos da carochinha. Mas, o que pouca gente percebe é que, nessa história, a Rainha Má era tão vítima quanto a Branca de Neve, pois era manipulada por um dos piores inimigos da humanidade: o espelho.

Não é de hoje que a imagem de si mesmo e do outro é capaz de enaltecer e destruir os seres. O personagem mitológico Narciso foi um dos primeiros a se levar pelos encantos do reflexo. Muito admirado por sua beleza, ficou tão encantado ao se deparar com a própria imagem em um rio, que parou de comer, de dormir e de viver. Ao se aproximar das margens para se ver melhor, acabou por cair nas águas e se afogar. E assim ficou registrado um dos mais antigos casos da ilusão perante a própria imagem.

Para nós, sobreviventes de AVC, a relação com o espelho é muito conflituosa, ao ponto de alguns de nós recusarmos a olhar para a própria imagem. Muito disso devido a um aspecto denominado “padrão AVC”, que basicamente é o resultado da metade do corpo enfraquecida pelo derrame, que deixa a boca e os membros de um lado do corpo tortos, dificultando a fala, a deglutição, a locomoção, o ato de vestir-se e a conservação da autoestima, já que vivemos em uma sociedade que diz que é preciso ser perfeito para ser amado e respeitado.

Lidar com o espelho é tarefa fácil para poucos, já que a tendência é procurarmos e aumentarmos o que consideramos defeitos. No nosso caso, prestamos atenção na mão, no ombro, na boca e nos olhos fundos marcados pelo intenso sofrimento psicológico que passamos pós-derrame. Todos esses aspectos parecem ser maiores do que nós, ao ponto de muito AVCista nunca mais sair de casa, vivendo uma espécie de prisão perpétua domiciliar auto decretada. “Quem irá se apaixonar por uma pessoa com a mão torta?” – já me perguntaram uma vez. E eu disse: “Ora, muita gente pode se apaixonar por você, já que a mão somente faz parte de seu corpo, ela não é você por completo”. Todavia, é fácil compreender o drama de quem precisa se adaptar a um novo corpo, agora machucado. Hoje em dia, além do espelho, somos seduzidos por outro tipo de encantamento: o mundo perfeito das redes sociais, em que nas fotos postadas não há acne, alergias, tristezas, decepções… Praticamente uma Disney virtual, pouco acessível a maioria, com padrões inatingíveis a todo ser humano. Já pensou se a Rainha Má acessasse as redes virtuais que acessamos todos os dias?  Com certeza faltariam maçãs no mercado.

Em um toque de mágica (que mais parece uma maldição), o AVC vem e nos “tira a casca”, transformando em menos de um minuto nosso corpo em uma massa frágil e pouco atraente. É como se o príncipe virasse sapo. O problema é que essa imagem “retorcida” nos engana, criando uma grande ilusão autodestrutiva da nossa identidade. Forma-se em nossa cabeça um pensamento muito cruel ligado a apenas ao que vemos (e julgamos) em nosso reflexo, pois não há como sobreviver a um acidente sem estar machucado. A recuperação é um caminho para todos, e dentro dela precisamos lembrar constantemente da nossa história, dos nossos desafios superados e das coisas leves do dia a dia, principalmente as que gostamos de fazer. Absolutamente tudo isso pode virar um gatilho para a reabilitação. É assim que ganhamos força.

Só que especificamente é difícil lidar com a expectativa, e consequente frustração, gerada pelo espelho porque ainda seguimos aquele velho padrão de beleza e felicidade impostos pelos outros: ter o carro tal, o cabelo assim, o corpo assado… E ficamos obcecados por esses parâmetros, sem nunca pensar se eles nos fariam verdadeiramente felizes.  Lidar com uma beleza superficial trincada pelas sequelas não é fácil para ninguém e não acontece de um dia para o outro.

Nos meus primeiros dias em casa, em que precisava de ajuda para fazer absolutamente tudo, exausta com a minha falta de autonomia, de repente gritei que queria ir embora para Pasárgada. A frase vem de um poema de Manoel Bandeira, que conheci em uma das aulas de literatura no ensino médio. Na época, eu gostei tanto que tomei emprestado o livro na biblioteca da escola (sim, sou antiga) e comecei a decorar alguns dos poemas que mais gostei, assim, eu não os “perderia” quando devolvesse o livro. O método deu tão certo que eles continuaram na minha cabeça mesmo depois de dois derrames, pois era em Pasárgada que queria estar quando fisicamente estava limitava a minha própria cama. Manoel Bandeira nunca soube, mas ele me incentivou a voltar a escrever em uma época em que desenhava apenas o meu próprio nome e algumas palavras soltas. Os poemas dele eram uma parte de mim importantíssima que, até então, eu não tinha ideia: foi a primeira parte da minha casca que retornou ao seu lugar.

Aspectos como o mencionado são exemplos dos verdadeiros fragmentos que estruturam a nossa existência, e são justamente eles que nos mostram o caminho para continuarmos vivendo, independentemente do drama pelo qual passamos. Esses hobbies, lembranças e atividades fazem parte do nosso ser real, e não aquela imagem ilusória refletida no espelho. Ou seja, identificando e reconstruindo quem verdadeiramente somos é o modo mais eficaz de reconfigurar a relação com o espelho e colocá-lo em seu devido lugar: o de objeto. Não podemos ser dominados por ele como aconteceu com a Rainha Má, nem nos apegarmos a uma imagem ideal e ilusória, assim como acontece com a nossa geração diante das redes sociais.

Espelhos, se vistos apenas como objetos, podem ser valiosos na recuperação pós-AVC, pois eles incentivam o cérebro a movimentar o lado lesionado por meio de atividades fisioterápicas, nos ajudam a corrigir a postura e até a nos vestir (já que a tendência é esquecer de arrumar o lado lesionado, deixando com certa frequência os bolsos e as meias reviradas nesta parte do corpo). O objetivo deve ser utilizar o reflexo para nos ajudar a obter um determinado resultado e não nos autopunirmos. É preciso treinar a mente para usar todos os subterfúgios ao alcance em prol do próprio bem-estar, tanto aqueles relacionados ao corpo como os relacionados à alma. A própria reabilitação ensina isso: não é à toa que um dos exercícios mais eficazes para desentortar a boca pós-derrame é sorrir, de preferência na frente de um espelho.


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