Crônica para a minha morte

Morri duas vezes no ano passado, e isso me ensinou muito sobre a vida

Nesses dias pandêmicos em que a insegurança anda à solta e que muitas pessoas estão com medo do fim, resolvi escrever sobre quem me acompanhou nos meus vinte e um dias de UTI, naquele vai não vai cheio de agonia: a morte.

Sabe, eu sempre tive muito medo da morte, desde criança ficava acordada até mais tarde numa aflição pensando em como seria o meu fim, com um baita medo. Até confesso que me aproximei do ocultismo e do espiritismo por causa desse pavor, na vontade de saber se existe um outro lado ou como é esse lance de passagem.

Mas não tem como eu falar disso aqui (sim, este texto é sem spoilers), porque assim como todo mundo que está vivo, não tenho certeza sobre nada disso, e nunca terei. Só sei que morri duas vezes no ano passado.

A primeira delas foi em um instante, em menos de um segundo, ou quase isso. Quando o aneurisma estourou eu não tinha muito o que fazer a não ser pedir socorro, o que foi heroico da minha parte, e resistir. Mas não foi uma resistência consciente, porque fui intensamente embalada pelo inconsciente. Foi um sono muito intenso intercalado com uma confusão mental. Não me lembro de minha amiga chegando, nem do SAMU, nem na cena que fiz no saguão do prédio (um chilique digno de ex-atriz global).

Lembro do branco, do rosto do médico dizendo que iria abrir a cabeça, de minha mãe e minha tia segurando cada uma de minhas mãos, do rosto sério de meu pai, como se fosse fragmentos de um sonho, até o branco total.

Na primeira cirurgia eu tinha doze por cento de chance de sobreviver, e não me lembro de nada, apenas do branco e da ausência de dor, porque a morte é indolor, pelo menos foi desse jeito que ela se apresentou para mim.

Depois, quando sobrevivi pela primeira vez, veio a dor absurda de um AVC hemorrágico pós-cirúrgico, tão absurda ao ponto de morfina não dar conta. Lembro um pouco da visita dos poucos amigos que conseguiram me ver, e de que incrivelmente eu estava feliz por poder me despedir deles. Apesar das palavras de incentivo eu sabia que estava por um triz, porque a morte além de indolor nos traz uma pavorosa sensação de paz. 

Depois, vieram os delírios, as frustradas tentativas de fuga, e o meu encontro com as minhas orixás, a de batalha e a de amor. Acho que a gente sempre vê o que acredita quando o corpo está se preparando para descansar, não sei ao certo se é uma descarga elétrica cerebral ou se é alguma experiência mística de passagem para o além mesmo, mas senti, vi e conversei com o que acreditava, e só isso já me dá a certeza de que a minha fé é grande.

Com o isolamento da UTI não pude ver nem me despedir de um monte de gente, então comecei a me despedir de todos que amava nos meus pensamentos. Começou quando me levantaram para andar e eu me imaginei dançando com um amigo que na época estava num país muito distante. Depois, aprendi a “andar” nos meus pensamentos e me imaginei andando à noite na rua XV, sem medo de ser assaltada ou coisa pior. Porque de algum modo eu sabia que era a minha despedida em forma de delírio.

Aliás, eu sofri muitos delírios, porque a minha mente já estava se desconectando daqui. E mesmo amarrada e dopada arranjei um jeito de fazer o que eu quisesse, para você ver como a liberdade é abstrata. Ela está dentro de nós.  E então veio o segundo AVC, que apesar de isquêmico me causou imensa dor porque foi fruto de um vasoespasmo, uma contração involuntária dos miolos tão forte que comprimiu as artérias cerebrais, e antes de adormecer a morte novamente veio me beijar.

Daí sim tive o delírio de passagem, de estar marchando com outras almas e quase ir definitivamente para o outro lado. Possivelmente isso aconteceu na segunda cirurgia cerebral.  Sobre essa parte de delírios, ouso fazer um adendo: eu distinguia o delírio de um sonho por meio do toque, no delírio eu sentia o toque da minha mão que foi danificada, no sonho não. Então eu procurava machucar a mão, se ela doesse era delírio, se não era sonho.

Mas no final das contas eu acordei, e como era cansativo estar viva. Em umas das últimas noites na UTI eu adormeci e fui até o meu velório, onde de fora percebi como eu era pequenininha, que o Bruno não tinha chego a tempo e que vi (ou imaginei) as pessoas que estava com vontade de ver.  Foi uma das melhores lembranças da minha morte. E eu não estava feliz porque tinha morrido, mas por poder ver as pessoas que tanto amava. Tudo era simples e leve, assim como a vida sempre foi e nunca tinha percebido.

A morte não me levou consigo mas em sua visita me ensinou muitas coisas, como por exemplo, que não podemos controlar nada. Mesmo internada eu pude me despedir da minha cidade que eu desvalorizava e visitei outra em que olhava para um céu estrelado (e que conheci presencialmente meses depois numa cidadezinha de Pernambuco).

Ela também me ensinou o valor do desapego, porque se ela foi boa para mim é porque não me apeguei ao que chamava de vida (emprego, casa, gatos, um cara…) e fui vivendo… e morrendo um dia de cada vez. Hoje sou uma pessoa mais calma em relação a ela, não a temo e nem a expulso dos meus pensamentos.

Descobri que a morte faz parte da vida, e não ao contrário dela. E que coisas como patrimônios, religiões, pendências e certezas não importam. São coisas pequenas diante do amor, da fé…E da morte.

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