Coma

Foram duas cirurgias cerebrais e dois comas induzidos. Eu já sei como é estar em coma, e conto como foi ter essa experiência

Acordo, mas não consigo abrir os olhos. Sei que meus braços estão ao lado do meu corpo, tento ajeitá-los, mas não consigo movê-los. Felizmente não é a primeira vez que isso acontece, eu já sei como é estar em coma, então tento manter a calma. Tenho consciência de que estou no hospital e que não consigo me mover por causa de um “transe” à base de remédios. E já sei como sair disso. Preciso descansar, dormir, entrar em um ou dois delírios e acordar mais forte. À medida que eu vou “acordando”, os sentidos vão sendo recuperados. Mas no início só tenho a audição. Ouço muito bem e com isso procuro encaixar o quebra-cabeça do que está acontecendo à minha volta. Sinto pavor, tristeza, mas não consigo chorar porque os olhos estão imóveis. Raramente alguém de branco os abre e passa uma luz forte, depois ele é fechado. Tudo volta a ficar escuro.

Os enfermeiros estão trabalhando, ouço passos, respirações, conversas casuais de plantão, de vida. Acho que eles não têm ideia de que eu os escuto. Falam de futebol, do tempo, do meu estado, dos estudos, sonhos, dia a dia de suas vidas… Tento prestar atenção nessas conversas, mas como estou muito cansada, volto a “dormir”. Às vezes, para me acalmar, penso na Elke, minha gatinha de estimação, com várias miniperucas na cabeça (assim como a artista em que inspirei o seu nome) e em como poderia fazer cada um desses adereços se estivesse em casa.

O pessoal da UTI me chama de “guerreira”. No começo me sentia motivada pelo adjetivo, mas depois percebi que todos os pacientes são chamados assim e me senti traída pela falta de exclusividade. Teve uma vez que uma mulher, possivelmente técnica ou enfermeira, me olhou ao pé da cama e soltou um “Tadinha!!” Eu sabia que era uma mulher por causa do cheiro dela. Na UTI não pode ter perfume, mas as pessoas têm o cheiro delas e agora eu já posso sentir isso porque o olfato está voltando. A menina tem cheiro doce. Quando o tato começou a voltar, senti que às vezes recebia um carinho na cabeça, de leve, na altura das cicatrizes. Um dos homens também conversou comigo uma vez. Ele falou que eu iria ficar bem, que todo mundo dali torcia por mim, coisas desse tipo. Eu gostaria que ele me avisasse que os sonhos ruins são delírios, por isso parecem ser tão reais. Gostaria de dizer que o escuto claramente.

Acordo de novo e tento fazer força para cruzar os braços. Com muito esforço mexo levemente o direito, porque eu ainda não sei que estou hemiplégica (a metade esquerda do meu corpo está paralisada). Coloco o braço direito em cima da minha barriga, mas me canso tanto para fazer esse movimento que volto a dormir.

Para ir além

Afasia
Pequeno manual para conviver com quem teve um AVC

Sobre o/a autor/a

Compartilhe:

Leia também

Melhor jornal de Curitiba

Assine e apoie

Assinantes recebem nossa newsletter exclusiva

Rolar para cima