Capacitismo

É claro que muitas empresas contratam PCDs, mas a maioria das vagas são para funções menos especializadas, com atividades quase automáticas e com poucas chances de crescimento na carreira

No primeiro dia do mês de maio celebramos o Dia do Trabalho. Algo muito natural no curso de vida da maioria dos brasileiros, mas intensamente batalhado por pessoas com deficiência. Aqui eu explico o porquê.

De acordo com a Lei das Cotas (Lei 8. 213/91), em seu artigo 93, é obrigatório que as empresas com 100 ou mais empregados preencham seus quadros com 2% a 5% dos cargos com beneficiários reabilitados ou pessoas com deficiência. Muita gente não sabe, mas por trás do marketing exaltando a boa vontade das empresas ao contratar pessoas reabilitadas ou com deficiência há uma legislação que estimula essa contratação. Porém, apesar de termos a Lei de Cotas ao nosso lado, enfrentamos um monstro muito cruel e poderoso chamado capacitismo, que basicamente é o preconceito contra pessoas com alguma deficiência. Resumindo: somos vistos como menos capazes de realizarmos determinados trabalhos por termos alguma deficiência.

Eu, por ter adquirido uma deficiência, pude constatar claramente a diferença de tratamento pelas corporações depois do meu acidente. Se antes era convidada para entrevistas, agora meu currículo é descartado na primeira avaliação, me sendo barrada a oportunidade de realizar qualquer teste classificatório. O currículo continua igual: duas graduações, duas pós-graduações, estudo de cinco línguas e várias habilidades na minha atuação laboral. A única mudança foi a anexação de um laudo médico comprovando que agora sou uma pessoa com deficiência, e isso foi o suficiente para me tornar invisível na corrida por uma vaga de emprego.

É claro que muitas empresas contratam PCDs, mas a maioria das vagas são para funções menos especializadas, com atividades quase automáticas e com poucas chances de crescimento na carreira. Até lembro que uma das empresas em que trabalhei proibia o uso de órteses no escritório, e quando o pessoal do RH foi questionado por esta decisão, nos foi dito que era por causa da falta de acessibilidade do local. Um caso “curioso” já que a órtese em si não demanda muitas adaptações físicas, porém mesmo se demandasse, a realidade é que é mais fácil rejeitar colaboradores com deficiência do que tornar um escritório acessível a eles.

Este fato por si só já é desmotivador e afeta muita a autoestima da nossa comunidade que, consequentemente, não enxerga motivo para se empenhar nos estudos. Eu, uma pessoa que adquiriu deficiência aos 34 anos, não tinha ideia do enfrentamento que crianças e adolescentes com deficiência enfrentam nas escolas, por serem constantes alvos de chacotas e pela falta de acessibilidade nas escolas. Elas são vistas como “menos” por serem diferentes e acabam não tendo acesso a uma educação de qualidade, assim como nós adultos não temos acesso às vagas compatíveis com nossas habilidades físicas e intelectuais.

Como pedagoga, sei que como seres humanos temos inúmeras habilidades e podemos fazer história na profissão que temos ou desejamos ter. E assim como uma pessoa que não gosta de matemática pode escrever muito bem, uma pessoa com lesão cerebral adquirida em um acidente vascular cerebral pode também ser um excelente profissional utilizando uma área cerebral não atingida pelo derrame. Sei disso não só pelo conhecimento teórico aprendido nas lições de Howard Gardner em sua Teoria das Inteligências Múltiplas, mas porque em minha busca por aceitação e adaptação encontrei várias pessoas com deficiência que são magnificas em suas áreas de trabalho.

Dentre elas, Giovanna Dante, que sofreu um AVC aos 18 anos em seu primeiro período da faculdade de Fisioterapia. Após se recuperar, ingressou na faculdade de Fonoaudiologia e hoje atua nessa área. Giovanna, assim como muitos avcistas, não mexe uma das mãos, mas tem a sua capacidade cognitiva intacta: é inteligente, bem-humorada e altamente profissional em seu trabalho na prefeitura de Curitiba. Outro exemplo é Orlando Camas (o Dinho) que aos 29 anos sofreu dois AVCs hemorrágicos decorrentes de uma malformação arteriovenosa e não pode continuar em seu trabalho como motoboy na grande São Paulo, mas hoje exibe suas incríveis habilidades motoras com o futebol e almeja um dia se tornar jogador profissional. O desejo de Dinho foi impulsionado pela realidade de Washington Luiz de Almeida Querino Reis – o Tom – (Pinhais – PR) que, depois de sofrer um derrame, se tornou atleta paraolímpico nas modalidades de arremesso de peso, lançamento de dardo e de disco F-37 e treina regularmente na UFPR em busca de maior qualificação e patrocínio para continuar seguindo em frente. 

Eu, Giovana, Dinho e Tom não buscamos aplausos pela superação, mas respeito no mercado de trabalho para que possamos pagar as nossas contas de maneira digna e nos sentirmos úteis na sociedade. E esse desejo é compartilhado por todas as pessoas com deficiência (seja ela adquirida ou não). De modo algum queremos ser alvo de piedade e só poderemos ter a chance de mostrar isso se tivermos como ingressar nas áreas na qual somos altamente capacitados.

O capacitismo no Brasil é algo até incoerente já que o nosso “rei” da música, Roberto Carlos, é uma pessoa com deficiência, que não tendo uma perna cantou em diversos lugares do país e transformou a música popular brasileira com a sua arte. Nenhuma deficiência é totalmente limitadora, e isso deve ser constantemente falado e demonstrado até ficar claro para empregadores, empregados e população em geral, independente de lei.  Todos nós temos nossas diferenças e fazemos parte de uma só sociedade, e é exatamente por isso que falamos tanto em diversidade na política, nos jornais e nas escolas: porque o mundo é diverso, e a gente também. 

Este texto contém um pouco das histórias de pessoas que assim como eu se tornaram PCDs em decorrência do AVC. Elas gentilmente me autorizaram a divulgação de seus nomes e de suas histórias. 


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